Quem tem a coragem para escrever aqui?
Depois da ressaca dos festejos, é hora de voltar ao trabalho,
ao frio e arrepiante mundo das palavras inóspitas, solitárias.
Do afirmar aqui e agora os males do mundo.
Este é o reino do podre, do nauseabundo, da sub-cave,
das intempéries da alma! Fétido hálito dos transeuntes,
olhos enviesados, carcomidas vozes de raiva.
Sonolenta e conspurcada vivência, dias eléctricos,
luminosidade aparente, massas a consumir, a omitir
um ano inteiro de frustrações acumuladas, de ódios ao volante.
Um ano inteiro de estradas perdidas para o vale da morte, humanos
que não se olham, não se tocam, tudo aparência!
Fatal natal com o desejo animal da festa, da embriaguez
dos sentidos, da anulação da vida. Seres que andam, correm nas
ruas, nos hipermercados, nos centros culturais da nossa vida comercial
e popular. Nas estradas são os loucos ao volante, pela estrada fora,
a toda a brida, avançar, sem olhar, sem dialogar.
Sorrisos imediatos, inebriantes.
Prefiro o fel das minhas solas de sapato rotas, o azedume do mar,
as dunas desfeitas na maré, o ocaso salino, o odor a castanheiro velho.
Quero o trapo sujo, o bêbedo que mete conversa, a quem lhe pago um copo,
porque não quero contribuir para vícios alheios, só pago a quem gosta de beber!
Quero a noite escura, não quero néons nem presépios, nem pais natal à varanda,
nem bolo-rei, nem coisas que me fazem engordar e morrer cedo.
Prefiro morrer com uma ardósia na mão, escrever os mandamentos da
educação do cidadão, reeducar-me a mim próprio, aprender com os meus erros.
Quero a gruta no meio da serra, tal como Sebastião da Gama, insigne poeta da
Arrábida e de Setúbal, que se fechava no seu eremitério.
Quero um Luís Pacheco que me faça soluçar, chorar, sentir a terra a tremer-me
debaixo dos pés, um Cesariny que encontrei uma noite no Bairro Alto, naquele bar
esconso, decadente, adúltero e velho, com fados, guitarradas e muitos cigarros.
Quero ficar sozinho, não quero as mensagens dos telemóveis, os cartões de boas festas,
os presentes. Prefiro os ausentes, os meus mortos, as minhas despedidas, aqueles que me deixaram para trás, ou quem eu deixei, aqueles de quem me desencontrei, aqueles a quem nunca pedi perdão! Quero sentir a dor, quero pagar pelas minhas faltas, pelos meus pecados,
sentir todo o inferno nos meus olhos!
Não sou digno de confiança, não sou digno de amor, sou digno da mais putativa solidão e amargura. O Natal é para quem se porta bem! Eu quero apenas recordar os passados, as memórias, os sonhos! Tudo o que criei, tudo o que fiz de bom, mas também aquilo em que errei.
Quero ser uma persona com lastro de passado, nesta época em que só se pensa no presente, no momento, no clímax, e depois... tudo se desvanece, tudo se esfuma. Prometemos que mudamos no ano novo, mas passada a tesão, voltamos a ser quem éramos, enganamo-nos a nós mesmos, engalfinhamo-nos nas teias deste presente que nos ausenta da vida, que nos faz perder o norte, o sul e todos os rumos do desconhecido.
Arriscamos pouco, só pisamos solo conhecido, palpável e macio. Nada de grandes revoluções, convulsões. Nada de pensar em dor, morte, negritude.
A nossa vida tem de ser vermelha, encarnada, amarela, branca, pura e católica. Temos de nos ajoelhar para sentir o frio nas pernas. Fora isso, temos os nossos ares condicionados, os nossos passos vigiados, a nossa comida microondicionada, o nosso amor regulado em ciclos de 28 dias, bem certinho como um relógio Suíço. Tudo é insonorizado, calculado, regulado. Queremos conforto e eficiência. Queremos ciência e Desporto. Mas não andamos a pé, não fazemos exercício físico, somos obesos e ainda queremos mais. Consumir, Consumir para destruir! Nesta época não quero nada disso, não quero correr atrás do prejuízo, do pré-juízo, do juízo prévio. Não quero prever nada, não quero antecipar nada.
Nada de nada, nem dinheiro, nem presente, nem futuro!
Vou-me encontrar com o passado, provando o fel, nas minhas solas de sapato velhas e rotas!