31 de janeiro de 2009

Carta de Amarear

Descias a 31 de Janeiro rumo a São Bento quando te vi. E dizias mal da vida, das chuvas
ácidas e das ruas inclinadas demais para os teus sapatos. Só consegui que parasses com
um beijo demorado na tua boca, agora nossa boca de afectos partihados. Disse-te: Bom dia!

Sem mais delongas, arrastaste-me até à gare dos azulejos demasiadamente azuis e brancos
que não pude deixar de pensar no imenso céu que saía dos teus olhos. Era a tua vez de
responder à minha pergunta inicial, feita saliva em demasia. Com um fugaz: -Obrigado!
Sempre que te vejo, és a calma no meu mar revolto, o sol nos meus olhos, uma arma contra
a monotonia dolente dos dias. E foste embora. O comboio tinha de partir. Sem reagir, fixei
o teu gesto final, um braço estendido no ar, agitando com carinho a saudade que se espraiava
no grande átrio da gare. -Até um dia destes, disse para comigo. Encontramo-nos numa rua
qualquer, num dia fixo, numa praça da liberdade saudando abril com cravos, numa rua 1º
de Maio, de cabelos ao vento nesse maduro mês de Zeca Afonso, numa 24 de Julho qualquer
com o suor dos nossos corpos, num bar perto, numa praça 5 de outubro, celebrando a outonal
república em beijos e abraços sem fim, sempre em viagem, sempre em busca de um novo
olhar, uma desejável vitória dos sentidos, novas bocas ao acaso por alimentar, dor festiva
de tanta paixão nos poros solitários de um vagabundo em criação nas profundezas do amor.

27 de janeiro de 2009

Uma Conversa Demorada nos teus Lábios

Uma conversa demorada nos teus lábios. Foi assim que me disseste, mal chegaste à estação.
Desejavas aquilo que não te conseguia dar, uma conversa demorada nos meus lábios.
Um arrepio no corpo fez-me estremecer de dor. Quantos sonhos não dariam por uma
frase destas! Sim, mas entre sono e vigília, há mais realidades por circum escrever:
- Uma conversa demorada nos teus lábios. Anseio comunicar contigo as novidades do
amor. Sem pressas. Com uma tese por esmiuçar no fim, comunicação intelectual e séria.
Não respondi. Subi os degraus do vagão agora vazio e parti sem olhar para trás, à procura
de novas paragens literárias, em conversas sem fim na poesia agreste dos teus lábios.

19 de janeiro de 2009

Percursos, Toques, Trajectórias

Um sinal na testa. Uma marca que adensa o mistério do mundo nos teus braços.
Mas agora foste-te. Morreste no país dos buracos na estrada. Na península dos
estranhos licores. A cerveja que bebias era fresca, forte. Agora queres que chova
no país das secas. No país dos marinheiros bêbedos. Na farsa dos futebóis. Era um
tempo de dramas e utopias na barragem do teu canto. A cultura de um povo está
neste cuspir denodado no chão das ruas inquietas. No vórtice das ruas sujas, ainda
há dejectos de cão por evitar, pedras soltas, sacos que esvoaçam no plástico que é
esta sociedade. No cartão em que tu dormes, esqueces-te do frio dos sentimentos
dos humanos. Recomeças a luta a cada segundo, sempre que alguém não pára no
sinal verde da tua afeição. Segue-se um pequeno pão de passas que te ofereci na
noite solidária, enquanto tocavas uma música de protesto na tua flauta dulcíssima.

13 de janeiro de 2009

Escritor F.C.

A senilidade é um posto! Posto isto, resta-me esperar que a luz não seja desligada
mais uma vez! Posto aqui esta ideia, porque é essencial discorrer sobre a corrente
alterna. São diferentes comprimentos de onda que nos marcam e aqui, nada mais
resta que esperar pelos disjuntores ligados e numa contínua energia silenciosa.
Do posto de comando do Movimento das Forças Alternadas, pede-se que toda a
população se mantenha calma e serena, porque o povo é isso mesmo, um ser ameno,
afásico, amorfo e asténico. Neste posto de alta tensão criativa, tenho de ter cuidado
com a muito alta deambulação pelas casas da escrita. No museu onde me encontro,
há mais "A Selva" e "Terra Fria" nas faldas da serra, por isso, também temos para
aquecer o espírito "A Lã e a Neve". Sim, esta é para o Ferreira de Castro, escritor
esquecido e pouco lido, nascido ali para as bandas de Oliveira de Azeméis, mas que
terminou os dias em Sintra e ali, no sopé do Monte da Lua quis ser sepultado.
Hoje estive contigo, escritor profícuo e maduro. Cresci mais um bocadinho.
("A Selva" passa-se na Amazónia, onde o escritor viveu e trabalhou em condições
muito agrestes, aos 18 anos. "Terra Fria" retrata as gentes da Serra do Barroso,
Trás-os-Montes. "A Lã e a Neve", fala-nos da Serra da Estrela e dos trabalhadores
de lanifícios da Covilhã. A ler, sem capas coloridas e berrantes, numa Biblioteca longe
de si, num alfarrabista perto do coração).

11 de janeiro de 2009

Missa em Cena

Que gozo ver-te ancorada no lamacento mundo dos estorvos!
Podias sair do imbróglio em que te metes com a humildade
dos simples, mas não. Preferes a sodomia assente na silenciosa
faca de dois gumes com que cortas a saudade. Só o passado
conta na aritmética defeituosa da tua memória. Por agora, há
desvarios loucos que suspendem a glória de uma encenação
fugaz. Peça a peça, vai-se construindo um cenário tímido, mas
real, pleno de vida. Depois há uma luz que incide sobre o teu
corpo mole e carcomido. O som que escuto é a de uma cave
com grande reverberação, acústica pejada de ecos da paixão.
Cristo não teria feito melhor! Disporia os actores em círculo
para uma última chamada ao inferno da personagem. São
aquíferas estas margens, num leito provisório e abundante.
Moldo o teu rosto com figuras ancestrais, pedaços de cor,
anfíbios que deambulam entre terra e mar. No sublime acto
de contrição, escutas o delicado canto de um ser ausente.
Perdida, divagando entre as sombras e os caminhos, dás-te
finalmente conta da tua enormíssima distração dos sentidos:
-Agora? Agora já é tarde para acorreres à última morte em cena!

4 de janeiro de 2009

À Espera

É triste estar assim. Ser assim. Perdido nas histórias do passado, acreditar nos sonhos, utopias vãs que não fazem sentido hoje em dia. O amor é uma história volátil e inquieta, absurda.
Se te contasse todas as vezes que penso em ti, não acreditarias. Que dependo de ti, que não sei fazer mais nada senão escrever a valer, então está tudo dito, embora pouco dito. Agora, o que mais importa é não fazer ondas abissais nem revoltar a leve instância dos silêncios. Há que acordar em demasia, limpar os vidros do nevoeiro dos dias e esperar, esperar o sol encantador e
leve de um abraço carcomido. Sem poluição nem sombra, um lustro invade o corpo de dor em doses aparentemente pequenas. Mas a esfera dos preâmbulos inquietos não termina nos novos dias nem na carne putrefacta por cozer em banho maria. Liofilizações que partem da ausência, da vida imutável e breve dos humanóides, mas que aprenderam a raciocinar em demasia. Pronto para a despedida copiosa e dura, encontro-me no limbo afável da maresia dos teus olhos, que espreitam por um pó de saudade. Despeço-me de ti, mas sei que é até breve. Até já, meu apaixonado ser que sobrevive em mim nas miragens da glória e da ventura. Acaricio o teu rosto solene e perfeito, pleno de mágoa e tormenta. Dá tempo ao amainar das feras, à consciente imagem da melancolia, à dedicação de um anjo apaixonado e humilde, teu servo pequeno e jovial, de olhos esbugalhados no teu sorriso, perene memória de sonho que resiste ao tempo.

1 de janeiro de 2009

A Lebre Grande

Estou a sorrir para um coração enorme que está diante de mim. Existe no meu corpo, nas
minhas memórias, nos nossos abraços. Somos felizes os dois assim mesmo: abraçados como
se não houvesse amanhã, como se este fosse o último ano de vida da terra. Não há sorriso
como o teu, não há beijos como os teus, não há mais nada para além de ti. Será isto a que
chamam o amor? Eu chamo carinho e amizade íntimas, chamo a tua mão com a minha, chamo
o calor dos nossos corpos, chamo-te a mais pura das vozes que cantam, a artista sensível,
lutadora, uma rocha grande cheia de musgo e de vida! Um abraço teu vale mais que todos os fogos-de-artifício do mundo.