15 de março de 2006

I am a potato now

Apercebi-me desde muito cedo que não era uma batata igual às outras lá do batatal. Enquanto elas apenas se preocupavam com o aspecto da folhagem, enquanto cresciam – “Já viste como o meu grelo está forte?” ou “Esta rama está mesmo frondosa, não acham?” – eu abstraía-me dessas frivolidades. Sempre fui uma batata muito introspectiva, ensimesmada mesmo. Gosto de reflectir sobre os desígnios da minha existência, sobre o meu lugar no mundo. Contaram-me que fomos trazidas das Américas há muitas luas. (Não sabia onde isso ficava, mas decididamente era bem para lá da copa das árvores que nos delimitavam o horizonte). Ainda que não os conheça, tenho orgulho dos meus antepassados.

Gostava de interpelar os ratos do campo e as toupeiras que passavam nas proximidades. Apesar de saber que se alimentavam também de batatas, tornei-me amigo de alguns deles, e por vezes ficávamos horas a conversar. Contavam-me novidades sobre o mundo exterior, ou seja tudo o que ficava para lá do batatal, e assevero-vos que recordo essas conversas com muita saudade, pois foram dos melhores momentos que passei.

Algumas luas depois, quando a nossa folhagem já estava grande e viçosa, apareceram os humanos que espalharam sobre ela um líquido com um sabor esquisito. Não percebia muito bem o que era aquilo (os ratos nunca mo souberam explicar) mas deixou-nos a rama bem molhada e escorregadia. De qualquer modo, esse líquido viscoso alterava-nos a consciência, pois ríamos muito e dizíamos frase desconexas sem saber muito bem porquê. Da primeira vez até inventámos uma cantilena, que cantávamos entre risadas. Era assim:


“Conheci uma batata que era muito marada!
Conheci uma batata que era muito marada!
A batata estava lá!
(lá lá lá!)
A batata estava lá!"

Depois apareceram uns bichos que nunca tínhamos visto até então. Eram pretos, com manchas castanhas e alimentavam-se da nossa folhagem. Horrorizadas, as outras batatas pensaram estar com alucinações por efeito do tal líquido. Lá lhes expliquei pacientemente que aqueles insectos eram reais. Ganhei coragem e perguntei a um deles quem eram. “Somos os escaravelhos. Somos primos das joaninhas.” – respondeu-me um deles entre duas sôfregas mordidelas na minha rama. Logo depois vieram os humanos e voltaram a borrifar-nos com o “líquido mágico”. Assim que vi os escaravelhos a definharem, em lenta agonia, percebi que aquela poção servia para dizimá-los por envenenamento. E tive pena deles.

Tempos passaram. Um dia aconteceu algo que nos marcou de forma indelével. Os humanos chegaram para nos colher. Foi arrepiante. Lembro-me do primeiro contacto com a luz, mas recordo com infindável amargura as muitas de nós que foram pura e simplesmente cortadas em dois. Outras foram esquecidas na terra, e ali ficaram a apodrecer, Para sempre separadas das demais. Foi angustiante! Hoje evitamos falar abertamente nesse assunto, mas todas sabemos que uma profunda ferida se nos abriu nesse dia.

Levaram-nos para um sótão pouco arejado, onde ficámos amontoadas. De noite, podíamos ver as ratazanas, enormes e sinistras, com os olhos a luzir no escuro e as garras e dentes afiados em busca de alimento. Tentei comunicar com elas, mas não eram afáveis como os ratos do campo; respondiam-me com grunhidos ameaçadores Tremíamos ao senti-las passar por nós. E por diversas vezes passámos noites em claro a ouvir os seus estridentes guinchos no escuro, quando caíam nas armadilhas que os humanos lhes armavam. “Esta foi-se”, dizíamos. “Quantas restarão ainda?”

Um dia, polvilharam-nos com um pó esbranquiçado. Não sei bem porquê (seria para afugentar as traças?); certo é que voltámos a cantarolar “A batata estava lá” em risos incompreensíveis. Voltámos a sentir-nos bem.

De quando em vez, os humanos vinham ao sótão e recolhiam algumas de nós para um recipiente alto e redondo com uma pega em cima. De cada vez que os sentíamos aproximar-se, pensávamos se seria esta a nossa vez. Duma das vezes trouxeram outras batatas para o sótão. Eram parecidas connosco, mas notava-se que tinham a casca diferente. Pensei entabular uma conversa com elas, mas foi-me dito: “Não fales com elas. Aquelas mais escuras são holandesas, as outras do canto são polacas. Ainda por cima puseram-nas mais abrigadas da humidade, enquanto muitas de nós começam a apodrecer a olhos vistos.” Aquiesci, e apesar da curiosidade natural que sentia, não lhes dirigi palavra.

Agora trouxeram para cá batatas novas. Foi uma algazarra! Soube bem ter novas companheiras (as estrangeiras não contam, essas não são bem-vindas) com quem conversar! Disseram-me que, uma vez que já há batatas novas, eu e as mais antigas seremos despejadas na terra para a fertilizar. As minhas companheiras, do alto da sua futilidade, passam os dias envoltas em lamúrias; dizem que estão a ser abandonadas, que é um despeito inadmissível.
Já eu fico contente com isso. Contente por finalmente cumprir a última etapa da minha passagem por este mundo. Contente por ficar em contacto com a Natureza, sentindo os seus odores, as suas cores, voltar a cheirar o solo e a conversar com os ratos, toupeiras e outros bichos. E quando apodrecer finalmente, poderei dizer que cumpri o meu papel no meu pequeno universo. Vou plasmar-me na Natureza, vou fecundá-la, tomando parte no grande ciclo de renovação da vida. E essa é a maior alegria que poderei ter. Poderei então dizer com toda a propriedade: “Agora sou uma batata”.

8 Comments:

Anonymous Anónimo usou da palavra

Um bom texto, com bastante ironia até, e fruto de muito deambular pela Natureza certamente.
Um abraço

15 março, 2006 10:05  
Anonymous Anónimo usou da palavra

Pois é, minha batata querida! Lembras-te daqueles tempos em que juntas, apanhávamos longos banhos, daquela chuva ácida e saborosa? E depois aquele calor luminoso, que nos suava a pele?
E das canções doidas depois disso?
Eu Sou uma Cenoura Altiva
E tu és uma batata velha!
Nã!Eu sou uma batata alegre
e tu és uma cenoura depressiva!

E continuavamos horas a fio nestes cantares ao desafio, sempre com um copo, junto aos nossos tubérculos vivazes e serôdios!

16 março, 2006 19:49  
Blogger Al Cardoso usou da palavra

Bem vindo lindas bonitas prosas, eu tambem estou vivo (creio)
um abraco de booooooooommmmmmmm
fim de semana, com chuva e tudo.

18 março, 2006 15:28  
Blogger Fred usou da palavra

Andava aqui a deambular de blog em blog e sem saber como, vim parar a este. Gostei muito desta história! Dá para ir pensando...
Cumprimentos e parabens pelo blog (já faz parte do meu circuito).

18 março, 2006 15:53  
Blogger Castanheira Maia usou da palavra

Quando voltas ao Deserto?

Temos saudades tuas e a canícula insuportável sempre se passa melhor com os amigos todos juntos.

18 março, 2006 21:36  
Blogger Aladdin Sane usou da palavra

Estou em pleno "distanciamento pernilliano"!

Até breve!

19 março, 2006 00:40  
Blogger Bel usou da palavra

Como me disseste a quaresma tem dessas coisas.

Batata que é batata deve reflectir sobre o seu lugar do mundo embora a frivolidade aparentemente faz algumas batatas mais felizes.

Todas as batatas têm medo do tacho e todas sonham com a fecundação para se sentir verdadeiramente batata

19 março, 2006 17:23  
Blogger JL usou da palavra

Aqui está a pefeita Alegoria da Batata. O texto irónico arrasta consigo outras estórias que esta alegoria deixa transparecer. Denota, também, pelo meticuloso percuso descrito que a batata faz um conhecimento de causa invejável.
Boa semana

19 março, 2006 17:57  

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