20 de dezembro de 2005

A Quinta

Faltava um mês para completar dezassete anos quando o meu pai achou que estava na altura de me ensinar certas coisas da vida. A inspecção militar ainda tardaria um ano, o tempo que demoraria a tornar-me um homem aos olhos da sociedade. Certamente informado das revistas que a minha mãe havia encontrado debaixo do meu colchão, o meu pai levou-me a dar um passeio de carro. Chegados a uma quinta nos arrabaldes da cidade onde vivia, deixou-me no carro, falou rapidamente com o dono e mandou-me entrar e escolher a árvore que mais me atraísse. Como não pretendia atrapalhar-me com a sua presença ficou a observar-me, embevecido, a uma certa distância.

Como seria de esperar, estava nervosíssimo. Nunca tinha estado em cima de uma árvore, apesar de ter umas noções vagas sobre o assunto. Deambulei pelo pomar da quinta, até que me decidi por uma frondosa nespereira. Respirei fundo e comecei a subir a escada de madeira (lembro-me de como me tremiam as pernas), até ficar completamente em cima dela.

Sorri nervosamente para ela e apresentei-me, tentando meter conversa. Como suspeitara, a nespereira não estava autorizada a falar comigo, donde logo me arrependi da figura de parvo que estaria a fazer. Até que me enchi de brio e decidi-me a colher o primeiro fruto (afinal era para isso que ali estava!). Apanhei duas nêsperas bem grandes e amarelas de maduras que estavam e aproximei-as da boca. Nisto, ouvi alguém lá em baixo: “Cuidado!” Olhei e vi o dono da quinta, que se aproximara sorrateiramente. “Ó amigo, era só para avisar que não deve comer os caroços dessa fruta! Olhe que pode apanhar alguma doença séria!” Agradeci, envergonhado pela posição em que tinha sido apanhado, já quase com a nêspera na boca.

Continuei a deliciar-me naquela nespereira, a tal ponto que a certa altura ouvi o meu pai pigarrear lá em baixo. Voltei-me, ainda com duas nêsperas na mão. “Vamos ter de ir embora rapaz, a tua mãe já deve estar em cuidados connosco.” “Já? Mas se ainda agora chegámos!” “Estás há quase duas horas em cima da nespereira! Vá lá, desce que temos de ir. Prometo-te que hás-de cá voltar, assim lhe tomes o gosto!” – disse ele com um sorriso ligeiramente imbecil.

E se lhe tomei o gosto! Antes dos dezoito anos feitos ainda lá voltei uma meia dúzia de vezes, sem me fartar daquelas nêsperas tão suculentas que tanto me deleitavam! Apenas lamento que a nespereira nunca me tenha dirigido uma palavra sequer, mas como referi assim tinha de ser.

Esta minha primeira subida a uma árvore marcou-me para o resto da vida.
A tal ponto que nos anos seguintes, numa conversa com um grupo de amigos, confidenciei que a minha fruta preferida é a nêspera e o quanto gostava de estar em cima de uma nespereira a comê-las horas a fio. Logo me apercebi, entre sorrisos e piscadelas de olho culturalmente produtivas, que me olhavam de soslaio, e as raparigas do grupo logo me puseram a “carinhosamente” a alcunha “Nêsperas”. Pressentindo a troça impressa nessa atitude, decidi não contar-lhes a história que agora vos narro; preferi antes contar-lhes a história do Ti Acácio.

O Ti Acácio era um homem já numa “meia-idade avançada” que morava mesmo ao lado da quinta das nespereiras (aliás, foi o dono da quinta quem me contou este curioso episódio que passo a narrar). Apesar de o pecado lhe morar ao lado, nunca cedeu à tentação de ir à quinta. Tinha um casamento feliz de mais de 30 anos, que terminou inesperadamente a 13 de Maio de há oito anos atrás, por falecimento da sua queridíssima esposa. Pode dizer que tal falecimento se tornou no primeiro contra-milagre de Fátima de que há memória, uma vez que a infeliz faleceu precisamente quando pedia à Virgem, via televisão, a cura para a diabetes que cada vez mais a apoquentava.

A súbita viuvez pareceu transtornar o homem; durante semanas, meses, os vizinhos viam-no cabisbaixo, melancólico, e as suas cordas vocais emitiam apenas sons rarefeitos.

Mas eis que o viúvo lá se decidiu por arranjar uma nova companhia, o que logo indignou a vizinhança. Tratava-se de uma boneca insuflável, que ele exibia descaradamente em público. Levava-a na motorizada para onde quer que fosse, punha-a na varanda junto a si enquanto apanhava sol, sempre com a expressão de boquiaberto espanto característica de tais apetrechos. Mas uma coisa era certa, a felicidade voltara a estampar-se-lhe no rosto rejuvenescido.

Só que a inclemente tragédia voltou a bater-lhe à porta. Um dia em que estava no seu pequeno quintal das traseiras com a Lola (pois assim a chamava), Adolf, o gato siamês do vizinho, decidiu afiar as garras nela. Logo o felino fugiu esbaforido com o barulho que a boneca fez ao rasgar-se, enquanto o Ti Acácio já só pôde ver a sua companhia a esvaziar-se perante os seus aterrados olhos. Pegou nela (melhor dizendo, no que restava dela) e foi num dilacerado pranto até à mercearia da esquina. Era ver as senhoras a benzerem-se e os homens sem saber o que fazer perante tão grotesco espectáculo. O Ti Acácio acabou por ser transferido para o lar da terceira idade mais próximo, e nunca mais soube dele.

O que mais me dói na sua história é pensar que tudo poderia ter sido diferente se ele se tem dirigido à quinta das nespereiras...

2 Comments:

Blogger Zeca Campos usou da palavra

hummm
Ora bem, ás nespereiras nunca fui, embora goste de fruta.
Prefiro merendar em sítio mais recatado como por exemplo o conforto do lar.
Embora goste de comer muitas vezes fruta prefiro apenas a fruta da época.

20 dezembro, 2005 03:27  
Anonymous Anónimo usou da palavra

ó meu amigo! Estes senhores não conhecem as idiossincrasias da fruta e seu aporte nutricional na nossa ração diária, que não é de somenos importância para os níveis harmónicos e racionais de vitaminas e minerais. Assim, recomendo-te que continues a nesperar, tal como eu a Uvar, a Melanciar, a Maçãnzar, até já me rendi às novas tecnologias frutais, vê bem, ao Kiwi! Isto é que é só alimento! Em cima de árvores,só figueiras e Laranjeiras, que Têm o caule mais resistente. É pena que quando se fale em frutas e legumes, começem logo as piadas e comentários jocosos, o que não abona nada, especialmente se forem ditos em tenra idade, pode causar aquilo a que eu chamo a aversão às frutas, que tem por nome Frutifobia! É um erro meus amigos! Deixem jogar o Man...Torras e bebam Frize de Limão, Ananás, Maracu..Já! E outros. Aquele abraço!

22 dezembro, 2005 18:48  

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