24 de dezembro de 2005

A Sociedade do Espectáculo

“O espectáculo é o mau sonho da sociedade moderna acorrentada, que finalmente não exprime senão o seu desejo de dormir. O espectáculo é o guardião desse sono.”

Na esfera da corrente que se designou de situacionismo, Guy Débord elaborou uma “teoria” da sociedade mundial, na década de 1960, que ainda hoje, apesar da convulsiva evolução dos modos de vida contemporâneos, impulsionada por um desenvolvimento acentuado a nível tecnológico, mantém uma pertinência e uma actualidade bem vincadas.

Em “La Societé du Spectacle” (1967), Dèbord anuncia o reinado da “sociedade do espectáculo”, resultante do triunfo do capitalismo; aliás estes dois aspectos encontram-se simbioticamente ligados, pois servem de suporte mútuo. O espectáculo invade, então, todas as esferas da economia e da sociedade, imiscuindo-se inclusivamente nas esferas do domínio privado, reorganizando-as e reinventando-as. “Ele é o sol que não tem poente, no império da passividade moderna. Recobre toda a superfície do mundo..." Ele impõe-se como "modo de vida dominante", numa evolução contínua que acompanha – e se confunde – com o desenvolvimento económico.

Para a edificação deste império concorreram diversos factores. Destes, o principal é o crescimento e desenvolvimento económico, que centrou em definitivo todo o processo de produção na “mercadoria”, no produto consumível. Em face disso, o trabalho humano torna-se definitivamente salariado, e o crescimento económico leva a que, uma vez assegurada a sobrevivência, se passe ao patamar superior das necessidades humanas. São as “sobrevivências aumentadas”.

Daqui resulta também uma evolução do operariado. Deixa de existir o trabalhador strictu sensu, passando a “coexistir” com o consumidor. Segundo Débord, a melhoria das condições laborais e salariais pretendem assegurar que o trabalhador disporá de mais tempo de ócio e de maiores capacidades financeiras, para que possa adquirir mais mercadoria, de modo a fomentar e a incrementar a produção desta. E o desenvolvimento do sector terciário não será senão o prolongamento da necessidade de aproximar a mercadoria do trabalhador / consumidor. O capital deixa de constituir apenas a força que estimula a produção; torna-se antes uma força de difusão “worldwide”, e “a vastidão da sociedade é o seu retrato”. Alguém falou em globalização?... A sociedade e a economia tornam-se indistintas, e uma depende da outra.

Num contexto da “unificação feliz da sociedade pelo consumo”, o que valoriza qualquer produto é o destaque que, num dado momento, lhe é conferido socialmente. Quando é divulgado, julgamos estar perante o “mistério revelado” daquilo que produzimos, logo daquilo que pensamos e somos. No entanto, logo que esse objecto é apropriado pelo consumidor, por milhares de consumidores, “desmistifica-se”, vulgariza-se, e logo se busca outro “ícone” que glorifique a nossa existência. Há uma procura incessante da “nova ilusão de verdade”, da “next big thing”, porque a sociedade do espectáculo não pára.

Há uma ascensão da burguesia, com a “liberdade do comércio generalizado”, de célere expansão, moldando o espaço à sua imagem. O espaço, na acepção tradicional da palavra, é reinventado, tornando-se um produto da sociedade do espectáculo. Há uma unificação do mundo pela mercadoria, e a própria sociedade universaliza-se, esbatendo de uma forma mais ou menos vincada as fronteiras tradicionais. Tal como o espaço, também o tempo se torna ele próprio uma mercadoria. “O tempo é tudo, o homem não é nada; é quando muito a carcaça do tempo”. É o tempo do não-desenvolvimento humano.

Voltando ao princípio, a sociedade do espectáculo apropriou-se dos trabalhadores para poder transformá-los em consumidores do dito “tempo-mercadoria”.

A esta alienação social vai corresponder a supressão da distância geográfica, decorrente do desenvolvimento tecnológico, bem como a tomada de posse do território habitado, através do urbanismo que, uma vez mais, vai espelhar e reiterar a realidade desta “nova ordem”.

“Com os meios de comunicação de massa a grande distância, o isolamento da população verificou-se ser um meio de controlo muito mais eficaz”. Este “devir consumista” origina o crescimento urbano “mushroom-like”, os santuários do consumo, a “ditadura do automóvel”, enfim, o grande supermercado mundial. Pode dizer-se mesmo que, no tempo presente, as cidades “estão a consumir-se a si próprias”.

É nos países mais desenvolvidos que surgem os primeiros sinais de contestação e de negação (real ou panfletária) da abundância capitalista. Quem tem tudo só fica com o tédio, apetece dizer. Recusando, ou pelo menos desconfiando, na essência, a sociedade do espectáculo e a “cavalgada desenfreada” do capitalismo, esta franja contestatária é desdenhada e reprimida pelo “establishment”. Contudo, ao pretender assumir uma postura iconoclasta face à sociedade do espectáculo, estes “anjos caídos” do capitalismo liberal inscrevem-se na cultura que rejeitam. É que, na sociedade do espectáculo, a negação real da cultura é a única a conservar-lhe o sentido. Ela já não pode ser cultural. Torna-se “algo que permanece ao nível da cultura, ainda que numa acepção totalmente distinta”.

3 Comments:

Blogger Bel usou da palavra

A contestação da abundância capitalista é apenas aparente mais uma daquelas acções que se executam apenas para estar de acordo com o padrâo imposto por uma sociedade.

O consumo turva a vista da maioria dos seres humanos que deambulam pela sociedade do espectáculo.

27 dezembro, 2005 20:38  
Blogger Aladdin Sane usou da palavra

Mas turva como? - pergunto. É a sociedade que se adapta ao homem enquanto consumidor ou ocorrerá já o inverso?

27 dezembro, 2005 21:45  
Blogger Bel usou da palavra

. A socedade impinge ao homem um dever d e consumo por outro lado o consumismo a que o ser humano se obriga impoe que a sociedade se adapte a essa "necessidade" de consumo.
xuacs

29 dezembro, 2005 23:25  

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