29 de março de 2006

Língua Cantada

Ontem foi noite de estreia no Novo Ciclo ACERT. “Cantos da Língua” foi apresentado a um público ávido e sequioso por inebriantes sensações do foro cultural. E eu, como poderia perfeitamente deixar de ser, lá fui. E venho falar-vos do espectáculo.

Antes de sair de casa, estava indeciso: que atitude adoptar para aquela noite? A de jovem poseur entediado, género “já-vi-tudo-vá-surpreendam-me-se-forem-capazes” ou a de “habitué de eventos culturais, género “isto-é-o-melhor-da-vida-e-vou-passar-a-noite-a-sorrir”? Desta vez optei por alternar, melhor dizendo oscilar entre as duas posturas (uma espécie de doente bipolar, portanto).

Antes de entrar no carro, lembrei-me que não tinha coca. “Bolas!”, exclamei levando a mão direita à testa. “Que fazer?” É fim do mês, já se sabe. Lá tive de passar pelo Lidl – que fica em caminho – e comprar duas garrafas de espumante. Como no Lidl todos os produtos têm o rótulo em alemão, enganei-me e trouxe espumante branco – as garrafas são todas da mesma cor, tanto que uma vez até comprei azeite por engano! Resumindo, lá “emborquei” as garrafas à porta do Novo Ciclo, tendo depois o cuidado de as colocar no Ecoponto Azul – nessas coisas sou muito criterioso.

Levantei o bilhete reservado e dirigi-me ao bar. Estava lá o Pete, que ao saudar-me reparou logo no meu estado. “Então, não arranjaste coca para hoje?” “Não, pá! Não tive tempo de lá ir comprar! Não é a mesma coisa assim limpo...” “Pois é, pois é...” respondeu, baixando os olhos. Reparei que já estava relativamente “coquinado” - o Pete diz que só as substâncias psicotrópicas lhe permitem transpor as limitações da percepção de criações artísticas. Não percebo ao certo o que quer dizer com isso, mas é sem dúvida uma atitude inteligente.

O foyer estava repleto de gente conhecida, e falava-se de uma panóplia de assuntos, desde a crise social e laboral em França até aos malefícios do uso de telemóveis. Até que as portas foram abertas e todos acorremos ao Auditório repleto.

As palmas foram uma constante durante todo o espectáculo, até à apoteose final com o merecido e inevitável aplauso de pé. Toda a gente aplaudiu, excepto a Tina. A Tina é uma rapariga de lá a quem o pai, que pertence à Legião de Maria, passava a vida a dizer: “Olha que apontar é feio!” Um dia, vencido pela fraqueza de espírito, cansou-se de o repetir e passou das palavras aos actos. Muito se falou por aquelas bandas daquele assomo de loucura! Tina lamentou a perda da mão esquerda, mas acabou por perdoar o pai, depois de vários meses de terapia.

Seguiu-se o tão ansiado “Dão d`Honra”, servido no bar e na galeria, afinal o melhor pretexto para uma troca de impressões mais ou menos espirituosas sobre o espectáculo a que acabáramos de assistir. Quando cheguei à galeria, as garrafas ainda repousavam num canto, envergonhadamente por abrir. Afoito, abri uma delas, dizendo em voz bem alta: “Brindemos à nossa língua com as nossas línguas!”. Alguns rostos voltaram-se Para mim com estranheza, mas não me importei e comecei a beber o precioso néctar que o próprio Baco não desdenharia.

Entretanto foram por lá passando caras conhecidas. Apareceram a Guta e a Lita. Elas são duas amigas inseparáveis muito, mas muito trendy. Ironicamente, a Lita usava uma saia plissada “Comme des Garçons”, o que foi desde logo motivo para umas boas risadas a três. Depois apareceu a Lena, a produtora do espectáculo. Perguntei-lhe, em tom de brincadeira, se não queriam conceber uma nova versão de “Cantos da Língua”, denominada “Cantos da Língua Morta”, em homenagem à minha pessoa. “Seria complicado ter um espectáculo em latim”, replicou prontamente. Logo irrompemos numa sonora gargalhada em uníssono (quer dizer, não foi uma gargalhada, mas duas, pois cada um soltou a sua, mas enfim, era como uma só, o que por vezes gera confusões quando se tenta explicar estas coisas). A Lita e a Guta mantiveram-se em silêncio – por razões que só elas saberão, não se davam muito bem com a Lena.

Alguns copos depois comecei a sentir uma forte, incontrolável ansiedade que me perturbava a conversação. Era a altura de me dirigir aos lavabos. Assim fiz, e mal lá cheguei retirei 4 ou 5 comprimidos de Pridane F do frasco e engoli-os sofregamente. Senti-me imediatamente melhor. (Ainda não consegui entender porque é que tanta gente insiste em cultivar o estatuto social ao tomar Prozac, Valium, Kainever e coisas dessas, quando podem tomar Pridane F por um preço bem mais acessível! Não percebo esta inclinação para a ostentação. Juro que não compreendo!)

Regressei à galeria aliviado, e entretive-me a contar ao Sérgio a história de quando tentei concorrer à Bienal de Jovens Artistas (Ui! Sou eu! Sou eu!) da Maia com uma obra que consistia no livro “Christiane F – os filhos da droga” aberto, com um frasco de “Pridane F ao lado, e em que os comprimidos faziam de gringas do livro. Só que a assistente do comissário da Bienal recusou a minha candidatura, dizendo que tinha de submeter à apreciação do comissário o conceito artístico e a descrição da obra. “O quê? Então eu, que sou o artista, é que tenho de entregar isso? Eu situo-me na esfera da criação! Vocês é que têm de descrever a minha obra! Vocês e o meu psicanalista!” Mas foram em vão os meus intentos. Perante a recusa em admitir o meu trabalho, virei costas à assistente, não sem antes lhe dizer: “E não penses que não sei o que andas a submeter à apreciação do comissário, sua desbargada!” nesta parte da história, o Sérgio ri sempre...

E por ali ficámos até nos informarem que o bar ia fechar. Contrariados, despedimo-nos e regressei a casa. Hoje de manhã soube que tinha sido uma bela noite, pois acordei na poltrona da cozinha com uma garrafa vazia aos pés e um valente torcicolo.

11 Comments:

Anonymous Anónimo usou da palavra

É, o problema dos comprimidos é um mal. Mas eu gosto muito do "Kaineve em Nova Iorque, faz sol no meu país", José Cid no seu melhor. Com ele não há dores de cabeça, pk esta música só pra quem não tem cabeça mesmo!
De resto, uma escrita inteligante (entre inteligente e elegante), cocaínada (mais vale Pepsinada), mordaz, acutilante, pusilânime, ACERTiva (esta foi muito boa), Tondeleira, Dãozeira, Porto Ferreira" (in Les Indeusdamaquinoptibles).

"Acertivo, espumântico, insone"
(Revista Latinices - Línguas Mortas inevitáveis)

"6 estrelas" (Revista Literária Uma a Mais é cunha!)

29 março, 2006 11:49  
Blogger Aladdin Sane usou da palavra

Nem elegante nem inteligente! Esta escrita é delinquente!

(José Cid, a mãe solteira do rock português...)

29 março, 2006 19:33  
Blogger Aladdin Sane usou da palavra

Informação ao público: Março termina na Sexta-feira!

29 março, 2006 19:34  
Anonymous Anónimo usou da palavra

Informação ao Correio da Manha (sem til- que palavra tão bonita é a palavra til- é mesmo nome de cantor de rock, mas com mais elegância, voz tilada, nasalada. ó til, canta aí "O deus do Barril!"), bom mas como ía dizendo, o Correio da Manha informa que em Abril já terão (não confundir com Teerão) o til! Tal como Teerão, que tem til.
Já fez Tilt, a vossa cabecinha?

~til ~~til duplo ~~: til duplo com duas pedras de gelo
~~ ^^ til duplo com duas acompanhantes universitárias, 25 anos, loiras, gostosas, bunda dura e boca eficaz

^ acento circunflexo simples
^^ acento circunflexo misto
^- acento circunflexo hifenizado
ä ë - isto, meus amigos, aquelas sobrancelhas sobre o A e o E, chamam-se tremas. Usa-se na língua alemã, francesa, Escandinavas, etc.
Exemplo: Citroën, ou será Citröen?
Bom, vou sair daqui e ver todos os Citröen's que estiverem estacionados.

Amanhã, tiramos as dúvidas acerca dos acentos graves e agudos, ok?
Vá meninos! agora, xixi e cama!

29 março, 2006 20:26  
Blogger Zeca Campos usou da palavra

Ora aqui está um texto bonito!

Mas estives-te lá na performance?
Eu nem te vi, também é verdade que encontrei o baco e estive por lá a conversar com ele (quero dizer com o Dão).

30 março, 2006 06:43  
Blogger Aladdin Sane usou da palavra

Performance? Não sou um artista performativo, mas um proto-artista degenerativo.

30 março, 2006 12:58  
Anonymous Anónimo usou da palavra

pra quem não foi!


Blog: cais de pena
Post: Cantos da Língua - A Metamorfose
Link: http://caisdepena.blogspot.com/2006/03/cantos-da-lngua-metamorfose.html

30 março, 2006 14:25  
Anonymous Anónimo usou da palavra

Fónix! Isto é que é gente que a Marlene havia de querer conhecer.
Os meus amigos reunem-se no parque de estacionamento do intermarche para fazer piões. O chão é de gravilha e dá bem para fazer...
mas pronto compreendo que a Marlene prefira esse Novo Ciclo ACERT.

31 março, 2006 22:44  
Blogger vareta usou da palavra

A mim a coca faz-me gases...
Parabéns atrasados ao senhor da língua morta - esse verdadeiro Bic Laranja, com uma escrita fina que é viciante.

01 abril, 2006 19:32  
Blogger Bel usou da palavra

O abandono do bar deveu se ao facto de tu quereres as garrafas do Dao todas para ti, logo eu tive que me vir enfrascar para casa. Ou seja a pressa está justificada.

Quanto a coca de vez em quando aparece algures nas prateleiras dos hipermecados acho que tavas demasiado necessitado. Tao necessitado que nem viste.

01 abril, 2006 20:56  
Blogger JL usou da palavra

Mas que noite, hein? hehehehe
Boa semana

03 abril, 2006 00:16  

Enviar um comentário

<< Home