Um Ministério da Cultura finalmente livre de… Cultura
por Helena Vasconcelos
Um amigo meu, português de gema, artista com extensos, firmados e reafirmados pergaminhos, e reputação internacional claramente enraizada, com características que o afastam do modelo-tipo do espécime luso encartado, escolheu não viver “lá fora” e continuou sempre a trabalhar por cá, embora a uma distância curta do aeroporto mais próximo. Esse mesmo meu amigo, que sempre me disse que quem quisesse podia existir, resistir e subsistir em Portugal porque o que interessa é o que se faz, reconheceu recentemente – à luz das recentes proezas da Ministra da Cultura – que “já não quer saber de nada do que se passa em Portugal” e que “vive exilado na sua própria terra”, preferindo fechar os olhos, os ouvidos e a boca, nesta sociedade de imbecis.
Na realidade, quem quiser sobreviver com a cabeça minimamente sã, não pode nem deve interessar-se ou participar nos acontecimentos da vida nacional. Eu conto-me entre os “malucos” que ainda lêem jornais e revistas, acompanham as notícias televisivas e se propõem ter e manter uma posição intervencionista, na sociedade, mesmo que com parcos resultados.
Nem tudo é mau, evidentemente. O António Mega Ferreira foi indigitado para a administração do CCB que bem precisado estava de uma reviravolta. No âmbito do Governo, é de referir a acção de Mariano Gago, para ganharmos todos algum alento. A diferença entre este senhor e os outros (e outras) é que tem um projecto, um plano e leva-o avante. Paciente e inteligentemente vai fazendo revoluções profundas na tessitura científica – e não só – do nosso País. Mas poucos se apercebem disso, embora muita gente vá beneficiar da sua acção, directa ou indirectamente.
É o contrário absoluto da Ministra da Cultura. Sem rumo nem ideias, parece um boneco de feira dos que dizem e repetem incessantemente palavras e frases sem sentido. (Na televisão, numa das suas caóticas e desarticuladas intervenções, o Secretário de Estado, colocado estrategicamente ligeiramente atrás, mas coladinho a ela, fez um número de ventriloquismo arrasador).
A Ministra dá entrevistas e aparece na televisão a debitar comunicados e tudo o que diz não tem significado ou quer dizer exactamente o contrário. Veja-se o caso da Colecção Berardo).
Já nem vale a pena falar da Casa da Música.
Mas a gaffe monumental em relação à exoneração do director do Teatro Nacional D. Maria II não tem paralelo. Num dos tais comunicados na televisão – sempre apressada e em jeito de “toma lá para aprenderem” – justificou convictamente a decisão de correr com António Lagarto do D. Maria por “falta de programação e por falta de público”.
Das duas, três: ou a Ministra está a mentir – o D.Maria tem tido uma programação como nunca se viu naquele teatro, uma programação “aberta” variada que tem atraído público de todas as áreas, idades e camadas sociais e António Lagarto revivificou aquela casa, arranjando, melhorando, dignificando e utilizando o “budget” de tal forma que recebeu um elogio do Ministério das Finanças, tendo o programa para 2006 bem estruturado – ou a Ministra não se informa devidamente e “engole” tudo o que lhe impingem – o que é mau, porque uma tutela da Cultura sem cultura é algo devastador; ou, ainda, a Ministra é um “peão no jogo da vida” de interesses inomináveis, o que tão pouco nos dá qualquer consolo ou satisfação.
É claro que o Primeiro-Ministro devia intervir – suponho que tem assessores culturais que o alertam para estas situações – mas, sejamos francos: neste País está-se toda a gente nas tintas para a Cultura. Temos Ministério da Cultura porque “ficava mal” se não tivéssemos, mas é só a fingir. E, o mais interessante, é que a situação é, também, marcada pela esquizofrenia: toda a gente comenta a “falta de cultura na sociedade portuguesa”. Os portugueses clamam que os portugueses lêem pouquíssimo, que não sabem falar, que não entendem as leis nem as medidas sociais, que não têm sentido cívico, etc, etc.
Ah! A cultura também passa pela boa educação e pelo respeito pelos outros. Quando Carlos Fragateiro correu a fazer declarações sobre o magistral projecto de “mais dramaturgia portuguesa” para o D. Maria II, antes mesmo de ser nomeado, mostrou a ânsia com que estava para passar por cima das mínimas regras do bom senso e do bom gosto.
Mas quem é que se rala com isso? Talvez os artistas, actores, escritores, agentes culturais e gente que trabalha em e para a Cultura e que estiveram no Rossio, no domingo passado e que se afligem – é este o termo – com o rumo dos acontecimentos. Mas, para o resto da população – a tal que clama contra a “falta de cultura” - os tais “artistas, actores, encenadores, escritores, agentes culturais e gente que trabalha em e para a Cultura” não passam de parasitas, sem se aperceberem que a Cultura não é algo estático, morto, arrumado e empacotado para “aparecer na televisão” quando é preciso dar a ideia de que somos “civilizados”, mas sim algo que é feito por pessoas, vivo, dinâmico e em constante mutação.
O Teatro D.Maria II é um bom exemplo: é uma casa muito difícil de gerir e António Lagarto conseguiu que toda a gente que lá trabalha se entusiasmasse com o seu projecto. Devolveu um espaço à cidade e aos cidadãos, atraiu pessoas de outras áreas culturais – da História, da Literatura, das Artes Plásticas – e mandou arranjar o próprio interior do Teatro que deixou de ser apenas uma fachada, uma “frente da casa” pomposa, para se tornar um lugar vivo, onde se ia, também, conversar, trocar ideias e discutir. A quantidade e qualidade das peças que levou à cena, as apresentações de livros, as “Conversas” e muito mais, falam por si.
Mas a Ministra não quer ver. Está confusa mas “nunca se engana”. E a teimosia dos que não querem ver é fatal.
O País fica paralisado de medo quando saltam cá para fora as notícias de que não vai haver capacidade para aguentar uma Segurança Social em colapso. Um colapso que nunca é novidade – embora seja tratado como tal – e que continua a ser o papão que congela o entendimento, já débil, dos portugueses.
(Quando se queixam da “população envelhecida” – viva a Inês Pedrosa que mostrou, numa crónica que há maneiras mais inteligentes de ver o assunto - dá a impressão que se querem ver livres dos velhos, embora nos países “normais” estes sejam uma força com enorme peso económico, intelectual, social. São pessoas que têm disponibilidade de tempo, que revitalizam o turismo, são grandes consumidores, vão ao cinema e a outros espectáculos, cuidam dos netos, ( e por vezes sustentam os filhos que estes não arranjam trabalho) frequentam universidades, etc. Por cá, o que se faz é acentuar a sua culpabilidade – “eh malta, atão ainda estão vivos?” – a sua sensação de humilhação por não serem tratados com dignidade. Mais uma vez falta uma cultura social e política.
E se toda a gente, incluindo eu, está preocupada com a sua reformazinha, porque é que ninguém está preocupado com o analfabetismo mental que continua a alastrar, em Portugal?
O único Ministro da Cultura que se impôs, que apresentou um Projecto sólido para a Cultura e que tinha sentido de Estado foi Manuel Maria Carrilho mas o País e o resto da pandilha trataram de o por a milhas.
(Ora não querem lá ver, um Ministro da Cultura que é culto e exigente? Onde já se viu tal despropósito???????)
Ora tudo isso advém da falta de cultura. E a cultura não é só saber responder à trivia dos concursos televisivos. Ou será?
Helena Vasconcelos
Storm-Magazine