1 de fevereiro de 2006

O dia de Nívea


Nívea acordou maldisposta nesse Domingo. Tinha aproveitado o fim-de-semana para rever alguns amigos dos tempos da faculdade, e a noite decorreu de bar em bar até à bebida final. Mas logo pela manhã recebeu um telefonema da redacção que a deixou logo contrariada.
Nívea, há notícias de estar a nevar na Figueira da Foz. Está toda a gente disponível destacada. Vais com o Vasco Rafael. Bom trabalho!

A jornalista desligou o telefone intempestivamente. “Bonito”, pensou. “Tinha de nevar hoje. Que merda de dia vou ter!”
Dirigiu-se ao café que era já o ponto de encontro habitual com o operador de imagem que sempre a acompanhava. Vasco já lá estava. Fumando nervosamente, queixou-se de ter sido arrancado da cama tão cedo.
- Da próxima vez que alguém me disser que inveja a vida do repórter de TV, vomito-lhe em cima! – ripostou Nívea.

Enquanto faziam o trajecto de Coimbra para a Figueira da Foz, Nívea preparava mentalmente as perguntas que teria de fazer aos transeuntes domingueiros que iria entrevistar. Nada de complicado, portanto; para além disso, reflectia no que tinha sido a sua carreira na TV Quatro. Podia considerar-se afortunada; afinal, mal tinha terminado o curso de jornalismo e já tinha conseguido o lugar naquela estação. Só teve pena de ter de abandonar o trabalho na Rádio Universidade, que tanto gozo lhe dava fazer. Ultimamente, contudo, sentia que o seu trabalho era cada vez mais rotineiro e pouco compensador. Andar sempre de um lado para o outro, a cobrir acontecimentos que, muitas vezes, só com uma grande dose de boa vontade poderiam ser considerados notícias. Só tinha de fazer perguntas à common people e deixá-los falar, quanto mais alto melhor, e tentando sempre acicatar a polémica, fosse qual fosse o assunto.

Mas o que mais a irritava – e a isso nunca poderia esquivar-se – era o tom irónico com que os colegas a chamavam na redacção. Nívea era um nome propenso a trocadilhos boçais; ela bem o sabia, mas tinha de fingir não reparar nos sorrisos idiotas dos colegas. Começava ficar farta de estar na Quatro, e vinha pensando seriamente numa inflexão a tomar na sua vida de jornalista.
Entretanto lá chegaram à Figueira: Vasco, Nívea e a sua figadeira. Encaminharam-se logo para a praia da Claridade, que estava revestida por um surpreendente manto alvo. Via-se muita gente por lá a passear.
- Ao trabalho! – disse Nívea, agarrando no microfone.
Vasco pôs a câmara a postos; prepararam-se rapidamente para a reportagem, e nem tiveram de ir à procura de entrevistados; uma pequena turba aproximou-se deles, como abelhas em busca de mel.

- Pronto? Podemos começar? Em 3, 2, 1... Quem poderia dizer que este areal estaria coberto de branco, proporcionando uma diversão tão improvável como esta que atraiu centenas de pessoas a este local, apesar do frio que se faz sentir? – Virou-se para a direita. – A senhora esperava uma surpresa destas por parte de São Pedro?
- Eu cá não, foi uma grande surpresa! – respondeu sorridente uma senhora de meia-idade. – Não estava mesmo nada à espera! Mas tem sido uma grande diversão!
- Já tinha visto alguma vez neve por aqui?
- Nunca! Neve a sério, só na Serra da Estrela. Estive lá na semana passada com o meu filho mais velho e...
- Mas vejo que não trouxe roupas apropriadas para estar aqui...
- Pois, não me agasalhei lá muito. Mas o frio até se aguenta bem! E a diversão compensa o frio.
- Não era disso que falava. A senhora já viu como vem vestida? Vem para aqui com essa roupa de feira, mal arranjada!
- ...
- Aos domingos vê-se cada coisa, realmente. Então aqui nas praias aparecem os campónios todos, no seu “passeio dos tristes” de quem não tem mais que fazer. Parecem uns maltrapilhos, não acha?
A mulher não respondeu e afastou-se, boquiaberta.
- Bom, aqui da Figueira da Foz coberta de neve, foi Nívea Vitoriano para a TV Quatro Informação.

Vasco estava estupefacto; ao desligar a câmara lançou um olhar incrédulo à colega.
- Que tens? Limitei-me a dizer-lhe aquilo que toda a gente pensa!
- OK, tu lá sabes. Vamos continuar com isto, que o frio quase me tolhe os movimentos. Mas desta vez não te emproes tanto!
Mas Nívea manteve o seu registo pedante. Em plena entrevista, perguntou a um homem se não tinha vergonha de aparecer na televisão como os dentes amarelados que tinha e disse a um miúdo que tinha um penteado ridículo demais para a sua idade. Até que se apercebeu que Vasco tinha desligado de novo a câmara e se tinha afastado a falar ao telemóvel. Segundos depois, o “câmara” abeirou-se dela.
- Vamos embora daqui – disse. – Ordens da redacção.
E só à medida que se afastavam é Nívea se apercebeu do burburinho que se tinha gerado naquela pequena multidão e dos olhares ameaçadores daquela gente.

No caminho de regresso, não trocaram palavra. Enquanto conduzia, Vasco estava absorto em vários pensamentos. Nunca gostara muito de Nívea; mantinham uma relação estritamente profissional. Essa atitude defensiva era uma espécie de escudo para Vasco, pois tinha de trabalhar com gente de diversos feitios – “personalidades”, como gostavam de dizer – lá na estação. Apesar de gostar do seu trabalho, ansiava por uma oportunidade de passar para a edição de imagem, onde poderia desenvolver a criatividade que possuía. Estes pensamentos foram subitamente interrompidos pelo toque do telemóvel de Nívea.

- Está sim? Boa tarde, senhor Viqueira! – Era o subdirector da estação. – Sim, sim. O Vasco Rafael falou consigo, não foi?... (silêncio) Não, apenas tentei animar as minhas entrevistas, não quis ofender as pessoas... não, não sinto que tenha ultrapassado quaisquer limites! (longo silêncio) Olhe, senhor Viqueira, não acho que esteja a precisar de férias neste momento. Para dizer a verdade, acho que o senhor está a tentar afastar-me da estação, mas não tem coragem Para dizer-mo! (outro período de silêncio) OK, estarei amanhã no gabinete da Direcção. Até amanhã!
- Acabou-se! – disse a Vasco enquanto desligava o telemóvel. – Vou finalmente sair deste inferno.
O resto da viagem cumpriu-se em silêncio. E, quando Vasco a deixou à porta do prédio onde vivia, Nívea despediu-se com um mero:
- Adeus! E felicidades!

Fechou a porta de casa e deitou-se no sofá. O cansaço da manhã tinha dado lugar a uma estranha sensação de alívio, como se acabasse de retirar um pesado fardo das costas. Ia descansar no resto do dia. E resolveu que logo depois da reunião na Quatro para acertar a rescisão do seu contrato, efectuaria todas as diligências para conseguir uma entrevista com a secretaria de produção do "Magazine" da 2: almejava trabalhar na área do jornalismo cultural, onde se sentiria finalmente entre os seus pares. Ligou a televisão, mas adormeceu pouco depois, enquanto a Quatro realizava um "Especial Informação" sobre o nevão daquele dia.

2 Comments:

Blogger Bel usou da palavra

Acho que a Nívia devia era ter colocado protetor , qualquer marca disponivel, e fazer um scusito na neve. E nessa altura sim diria Vasco vamos nessa?

01 fevereiro, 2006 21:55  
Anonymous Anónimo usou da palavra

Se cá nevou porque é que não se fez cá ski?
Mas a Nívea está de Parabéns, eu faria o mesmo! O que a maior parte deste povo precisa é de ser educada, de ter maneiras, de evoluir, logo, de não ver a Quatro!
Aliás, no Oriente, o Quatro é o número da morte, sabiam? Está tudo dito! (Infelizmente nasci num dia 4. Será que vou morrer um dia?)

02 fevereiro, 2006 13:00  

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