24 de fevereiro de 2006

História para fazer chorar e amar

- Vou-me embora!
Foi deste modo seco que Leila abandonou o apartamento, terminando a conturbada relação que manteve com André durante quatro anos. Este não respondeu; sentado à secretária, olhou-a de viés e franziu as sobrancelhas.
Estava de novo sozinho. Depois de mais uma relação fracassada, André começava a pensar que se tornaria num desses suburbanos que passam sós pela vida, conhecendo poucas pessoas, e mesmo assim a um nível superficial. Rapidamente esqueceu Leila, recordando apenas a frase que marcou a despedida. Aquele "Vou-me embora" soou-lhe mal, como se fosse dito por um qualquer actor da série "Riscos" - eles conseguiam dizer: "Estou grávida. Quero-me matar!" como quem diz: "Nunca vi um café tão mal tirado como este."

Continuou a sair de casa para o escritório às oito e vinte, regressando às cinco e meia da tarde, mas deixou de frequentar o ginásio lá do bairro, onde se tinha inscrito por ordem médica, no seguimento de problemas de excesso de peso e complicações cardíacas. Ia com Leila, e os exercícios eram monitorizados pelo instrutor. Mas agora não tinha vontade de ir. Não apreciava muito os olhares gulosos que aqueles "engatatões de bairro", como lhes chamava, atiravam à sua namorada. Agora André não estava para enfrentar os comentários dos vizinhos.

Passaram dois meses. André engordou, perdeu mobilidade e passava cada vez mais tempo isolado no seu apartamento. Até que resolveu procurar uma companhia que o ajudasse a suportar a solidão que sentia. E decidiu-se pelo teletexto da SIC. De quando em vez, lá ficava a ver aqueles estranhos anúncios a passar no ecrã da televisão. "Poderei encontrar quem me queira conhecer!" - pensou. Registou-se e colocou o seu primeiro anúncio. Poucos segundos depois, o seu coração batia forte quando viu passar no ecrã:

RomoMan37 20:16>
M solteiro trintão, procura F para amizade e possível relação. Lisboa e Lisboa-Norte. Rsp para privado (só chamadas, não a Kolmis ou toks).

Ficou a ver as palavras que tinha acabado de enviar até estas desaparecerem do ecrã. Poucos minutos depois, voltou a colocar o anúncio e a aguardar resposta.

Mas ninguém respondeu. Nem nessa noite, nem nas seguintes. Enviava a SMS várias vezes ao dia, mas nada de respostas. Até que se resignou: "Elas são tímidas e receosas, não querem assumir compromissos." E, numa dessas noites, por mera brincadeira, pôs várias vezes este anúncio:

RomoMan37 18:53>
Aluga-se cadáveres para sexo ao vivo.


"Já que toda a gente parece andar aqui à procura de sexo, pode ser que alguém ache graça a isto". Mas, para sua surpresa, a sua iconoclastia (como lhe chamou) pareceu dar resultado. Recebeu uma SMS de alguém dizendo ser uma rapariga que queria contactá-lo e lhe indicou o seu endereço de Messenger. André adicionou esse endereço à lista, e daí a poucos minutos já estavam a ter uma conversação vídeo pelo Messenger.

Ana Débora (pelo menos assim disse chamar-se) vivia na região Oeste e era estudante de Design Gráfico. Nessa noite abordaram assuntos superficiais - livros, filmes, teatro. Ana Débora tinha gostos algo distintos de André, o que provocou alguns comentários divertidos a ambos. Quando se despediram, combinando novo "encontro" para o dia seguinte, André tinha ficado com uma impressão positiva da sua nova "amiga virtual" - isto apesar do nome dela. Mas tinha também a sensação que ela se esquivava a falar de assuntos da sua vida privada, como se receasse partilhar a sua intimidade com um estranho. Nada de anormal, pensou André. E foi dormir.

Teclou mais algumas vezes com Ana Débora, sempre sobre assuntos triviais. Mas uma noite decidiu-se a perguntar-lhe se estaria disposto a conhecê-lo pessoalmente. Os dedos tremiam-lhe quando ligou o portátil e iniciou a sessão do Messenger. Para não ser incomodado, bloqueou os outros contactos. Cumprimentaram-se e começaram a "conversar". Minutos depois, André escreveu, trémulo, a ansiada pergunta:

Posso conhecer-te pessoalmente? Gostava de me relacionar contigo... :)

E foi nesse momento que sentiu como que uma forte picada no coração. Levou a mão ao peito, num gesto desesperado, e fez um esgar aflitivo. Pouco depois, tombava inanimado no chão da sala do apartamento. Acabara de sofrer um AVC que lhe foi fatal.

Marlene (ou "Ana Débora", como disse chamar-se) assistiu a tudo horrorizada, através da imagem da webcam. Ficou alguns minutos incapaz de reagir, limitando-se a olhar para onde a cara de André estava, mas agora só se via a parede azul-claro ao fundo da imagem. Lentamente, começou a reagir. Ia fazer de conta que nada tinha acontecido, para evitar preocupações futuras. Excluíu o endereço de André da sua lista de contactos e desligou o computador. Poucos minutos depois, chegou Davide, o seu namorado.

- Olá, amor!
- Olá, Marlene! Hoje o autocarro chegou mais cedo, vá lá saber-se porquê! Que tens? Estás tão lívida!
- Nada de especial! Estava só a pensar... estou farta de viver na Lourinhã. Porque não nos mudamos de vez para Lisboa? Já viste o tempo que gastas daqui até à repartição? Andas sempre cansadíssimo!
- Ó amor! Mas eu gosto de viver aqui! E pelo menos tens muito espaço para o teu atelier! Lá em Lisboa um apartamento destes ficar-nos-ia a um preço incomportável! E a Virginia pode passear à vontade! Tens reparado como ela anda feliz da vida?
- É, acho que tens razão! - disse Marlene Debyane, beijando-o. - Hoje vamos jantar ao chinês. Agrada-te?

10 Comments:

Blogger JL usou da palavra

Gosto da escrita e imaginação deste espaço. E esta história está contada de uma forma que deixa com facilidade um certo quê de verosímil. Continua.

25 fevereiro, 2006 17:52  
Blogger Bel usou da palavra

O acesso ao mundo com um é sme dúvida uma vantagem. MAs nem tudo se pode fazer via net principlamente sentir. Porque o messenger cria a ilusão a ilusão muitas dsa vezes de uma pessoa que nao existe. Pergunto me sera que a marlene vui mm o andre morrer ou ele estava apenas a fingir?

28 fevereiro, 2006 15:41  
Blogger Aladdin Sane usou da palavra

Ó Mata Hari, vê-se mesmo que não lês "O Crime"! Assim passas ao lado das coisas importantes que ocorrem no nosso país!

Apetece-me citar a Brooke "Lagoa Azul" Shields numa campanha de prevenção anti-tabágica: "O tabaco mata, e ao morreres perdes uma parte importante da tua vida". Trata mas é de ler o referido jornal, está bem? É que estás a perder uma parte importante da tua vida!

28 fevereiro, 2006 18:23  
Blogger Bel usou da palavra

Sim eu leio os jornais embora haja momentos em que preferia não ler. Não não é atitude de avestruz.

28 fevereiro, 2006 21:00  
Blogger Aladdin Sane usou da palavra

Búúúúúúúúúúúúú!

(Língua Morta "prega" um valente susto a Mata Hari)

Mata, Mata, Kill, Kill... estava a lolar contigo! (Estou na fase "lollipop"!)

Eu não leio apenas "O Crime" - apesar de ser a minha leitura predilecta. Leio também o "Le Monde Diplomatique" e o "Cahiers du Cinéma"! E quando me sinto à beira da falésia, pego no "Jornal de Letras" e uma gargalhada vaporosa, acompanhada de um hálito atroz logo de mim se desprende!

Xuacs!

28 fevereiro, 2006 22:39  
Blogger Eduardo Leal usou da palavra

Por acaso gostei imenso deste texto.
Interessante o tema e muito bem escrito.

Só achei estranho o moço não ter recebido mais contactos por causa do anúncio dos cadáveres.

05 março, 2006 21:01  
Blogger Aladdin Sane usou da palavra

E há por aí tantos, Ed.

Não quero parecer pretensioso (mas sou-o!), mas há por aqui textos antigos mais interessantes. Quando tiveres um tempo vagueia pelo "Pernillão".

05 março, 2006 22:32  
Blogger odeusdamaquina usou da palavra

Só há um problema! A verosimilhança não é tudo! O Que importa é a credibilidade!
Palavras do Mestre João Brites.

06 março, 2006 18:44  
Blogger Aladdin Sane usou da palavra

Pois, a credibilidade é tanta que, com tantas debandadas, chegam aos 40 cheios de artroses (olo)! Mas é por amor à arte...

Três vivas ao João Brites, e porque não também à Brites de Almeida?

06 março, 2006 22:45  
Anonymous Anónimo usou da palavra

se quiseres me matar não me mate com um punhal... Diga apenas que não me ama que serás um golpe fatal...

24 setembro, 2009 17:32  

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