Aproxima-te...
(Como poderia muito bem ter dito Heiner Müller...)
a tresvariar desde 2005
Em “La Societé du Spectacle” (1967), Dèbord anuncia o reinado da “sociedade do espectáculo”, resultante do triunfo do capitalismo; aliás estes dois aspectos encontram-se simbioticamente ligados, pois servem de suporte mútuo. O espectáculo invade, então, todas as esferas da economia e da sociedade, imiscuindo-se inclusivamente nas esferas do domínio privado, reorganizando-as e reinventando-as. “Ele é o sol que não tem poente, no império da passividade moderna. Recobre toda a superfície do mundo..." Ele impõe-se como "modo de vida dominante", numa evolução contínua que acompanha – e se confunde – com o desenvolvimento económico.
Para a edificação deste império concorreram diversos factores. Destes, o principal é o crescimento e desenvolvimento económico, que centrou em definitivo todo o processo de produção na “mercadoria”, no produto consumível. Em face disso, o trabalho humano torna-se definitivamente salariado, e o crescimento económico leva a que, uma vez assegurada a sobrevivência, se passe ao patamar superior das necessidades humanas. São as “sobrevivências aumentadas”.
Daqui resulta também uma evolução do operariado. Deixa de existir o trabalhador strictu sensu, passando a “coexistir” com o consumidor. Segundo Débord, a melhoria das condições laborais e salariais pretendem assegurar que o trabalhador disporá de mais tempo de ócio e de maiores capacidades financeiras, para que possa adquirir mais mercadoria, de modo a fomentar e a incrementar a produção desta. E o desenvolvimento do sector terciário não será senão o prolongamento da necessidade de aproximar a mercadoria do trabalhador / consumidor. O capital deixa de constituir apenas a força que estimula a produção; torna-se antes uma força de difusão “worldwide”, e “a vastidão da sociedade é o seu retrato”. Alguém falou em globalização?... A sociedade e a economia tornam-se indistintas, e uma depende da outra.Num contexto da “unificação feliz da sociedade pelo consumo”, o que valoriza qualquer produto é o destaque que, num dado momento, lhe é conferido socialmente. Quando é divulgado, julgamos estar perante o “mistério revelado” daquilo que produzimos, logo daquilo que pensamos e somos. No entanto, logo que esse objecto é apropriado pelo consumidor, por milhares de consumidores, “desmistifica-se”, vulgariza-se, e logo se busca outro “ícone” que glorifique a nossa existência. Há uma procura incessante da “nova ilusão de verdade”, da “next big thing”, porque a sociedade do espectáculo não pára.
Há uma ascensão da burguesia, com a “liberdade do comércio generalizado”, de célere expansão, moldando o espaço à sua imagem. O espaço, na acepção tradicional da palavra, é reinventado, tornando-se um produto da sociedade do espectáculo. Há uma unificação do mundo pela mercadoria, e a própria sociedade universaliza-se, esbatendo de uma forma mais ou menos vincada as fronteiras tradicionais. Tal como o espaço, também o tempo se torna ele próprio uma mercadoria. “O tempo é tudo, o homem não é nada; é quando muito a carcaça do tempo”. É o tempo do não-desenvolvimento humano.
Voltando ao princípio, a sociedade do espectáculo apropriou-se dos trabalhadores para poder transformá-los em consumidores do dito “tempo-mercadoria”.
“Com os meios de comunicação de massa a grande distância, o isolamento da população verificou-se ser um meio de controlo muito mais eficaz”. Este “devir consumista” origina o crescimento urbano “mushroom-like”, os santuários do consumo, a “ditadura do automóvel”, enfim, o grande supermercado mundial. Pode dizer-se mesmo que, no tempo presente, as cidades “estão a consumir-se a si próprias”.
É nos países mais desenvolvidos que surgem os primeiros sinais de contestação e de negação (real ou panfletária) da abundância capitalista. Quem tem tudo só fica com o tédio, apetece dizer. Recusando, ou pelo menos desconfiando, na essência, a sociedade do espectáculo e a “cavalgada desenfreada” do capitalismo, esta franja contestatária é desdenhada e reprimida pelo “establishment”. Contudo, ao pretender assumir uma postura iconoclasta face à sociedade do espectáculo, estes “anjos caídos” do capitalismo liberal inscrevem-se na cultura que rejeitam. É que, na sociedade do espectáculo, a negação real da cultura é a única a conservar-lhe o sentido. Ela já não pode ser cultural. Torna-se “algo que permanece ao nível da cultura, ainda que numa acepção totalmente distinta”.
Faltava um mês para completar dezassete anos quando o meu pai achou que estava na altura de me ensinar certas coisas da vida. A inspecção militar ainda tardaria um ano, o tempo que demoraria a tornar-me um homem aos olhos da sociedade. Certamente informado das revistas que a minha mãe havia encontrado debaixo do meu colchão, o meu pai levou-me a dar um passeio de carro. Chegados a uma quinta nos arrabaldes da cidade onde vivia, deixou-me no carro, falou rapidamente com o dono e mandou-me entrar e escolher a árvore que mais me atraísse. Como não pretendia atrapalhar-me com a sua presença ficou a observar-me, embevecido, a uma certa distância.
Como seria de esperar, estava nervosíssimo. Nunca tinha estado em cima de uma árvore, apesar de ter umas noções vagas sobre o assunto. Deambulei pelo pomar da quinta, até que me decidi por uma frondosa nespereira. Respirei fundo e comecei a subir a escada de madeira (lembro-me de como me tremiam as pernas), até ficar completamente em cima dela.
Sorri nervosamente para ela e apresentei-me, tentando meter conversa. Como suspeitara, a nespereira não estava autorizada a falar comigo, donde logo me arrependi da figura de parvo que estaria a fazer. Até que me enchi de brio e decidi-me a colher o primeiro fruto (afinal era para isso que ali estava!). Apanhei duas nêsperas bem grandes e amarelas de maduras que estavam e aproximei-as da boca. Nisto, ouvi alguém lá em baixo: “Cuidado!” Olhei e vi o dono da quinta, que se aproximara sorrateiramente. “Ó amigo, era só para avisar que não deve comer os caroços dessa fruta! Olhe que pode apanhar alguma doença séria!” Agradeci, envergonhado pela posição em que tinha sido apanhado, já quase com a nêspera na boca.
Continuei a deliciar-me naquela nespereira, a tal ponto que a certa altura ouvi o meu pai pigarrear lá em baixo. Voltei-me, ainda com duas nêsperas na mão. “Vamos ter de ir embora rapaz, a tua mãe já deve estar em cuidados connosco.” “Já? Mas se ainda agora chegámos!” “Estás há quase duas horas em cima da nespereira! Vá lá, desce que temos de ir. Prometo-te que hás-de cá voltar, assim lhe tomes o gosto!” – disse ele com um sorriso ligeiramente imbecil.
E se lhe tomei o gosto! Antes dos dezoito anos feitos ainda lá voltei uma meia dúzia de vezes, sem me fartar daquelas nêsperas tão suculentas que tanto me deleitavam! Apenas lamento que a nespereira nunca me tenha dirigido uma palavra sequer, mas como referi assim tinha de ser.
Esta minha primeira subida a uma árvore marcou-me para o resto da vida.
A tal ponto que nos anos seguintes, numa conversa com um grupo de amigos, confidenciei que a minha fruta preferida é a nêspera e o quanto gostava de estar em cima de uma nespereira a comê-las horas a fio. Logo me apercebi, entre sorrisos e piscadelas de olho culturalmente produtivas, que me olhavam de soslaio, e as raparigas do grupo logo me puseram a “carinhosamente” a alcunha “Nêsperas”. Pressentindo a troça impressa nessa atitude, decidi não contar-lhes a história que agora vos narro; preferi antes contar-lhes a história do Ti Acácio.
O Ti Acácio era um homem já numa “meia-idade avançada” que morava mesmo ao lado da quinta das nespereiras (aliás, foi o dono da quinta quem me contou este curioso episódio que passo a narrar). Apesar de o pecado lhe morar ao lado, nunca cedeu à tentação de ir à quinta. Tinha um casamento feliz de mais de 30 anos, que terminou inesperadamente a 13 de Maio de há oito anos atrás, por falecimento da sua queridíssima esposa. Pode dizer que tal falecimento se tornou no primeiro contra-milagre de Fátima de que há memória, uma vez que a infeliz faleceu precisamente quando pedia à Virgem, via televisão, a cura para a diabetes que cada vez mais a apoquentava.
A súbita viuvez pareceu transtornar o homem; durante semanas, meses, os vizinhos viam-no cabisbaixo, melancólico, e as suas cordas vocais emitiam apenas sons rarefeitos.
Mas eis que o viúvo lá se decidiu por arranjar uma nova companhia, o que logo indignou a vizinhança. Tratava-se de uma boneca insuflável, que ele exibia descaradamente em público. Levava-a na motorizada para onde quer que fosse, punha-a na varanda junto a si enquanto apanhava sol, sempre com a expressão de boquiaberto espanto característica de tais apetrechos. Mas uma coisa era certa, a felicidade voltara a estampar-se-lhe no rosto rejuvenescido.
Só que a inclemente tragédia voltou a bater-lhe à porta. Um dia em que estava no seu pequeno quintal das traseiras com a Lola (pois assim a chamava), Adolf, o gato siamês do vizinho, decidiu afiar as garras nela. Logo o felino fugiu esbaforido com o barulho que a boneca fez ao rasgar-se, enquanto o Ti Acácio já só pôde ver a sua companhia a esvaziar-se perante os seus aterrados olhos. Pegou nela (melhor dizendo, no que restava dela) e foi num dilacerado pranto até à mercearia da esquina. Era ver as senhoras a benzerem-se e os homens sem saber o que fazer perante tão grotesco espectáculo. O Ti Acácio acabou por ser transferido para o lar da terceira idade mais próximo, e nunca mais soube dele.
O que mais me dói na sua história é pensar que tudo poderia ter sido diferente se ele se tem dirigido à quinta das nespereiras...