7 de dezembro de 2005

Como me tornei amigo dos animais

Foi por pouco que consegui desviar o meu pé. Já anoitecia quando, distraído como ia no meu jogging, quase pisei o ouriço-cacheiro que se me atravessou no caminho. Parei, e ao recuperar do susto, apanhei outro ainda maior:
"Mais um pouco e espezinhavas-me, atenção à estrada!"

Não podia crer no que ouvia! Um ouriço-cacheiro a falar com voz de duende (sim, desde esse dia acredito em duendes!), e a fitar-me com a expressão zangada de alguém que acabou de sentir a morte a cair-lhe literalmente em cima. Mas depressa me refiz da surpresa:

"Estava tão absorto nos meus pensamentos que nem te vi, desculpa. Estás bem?"
"Sim." - respondeu, com um ar falsamente ofendido. "Mas tenho de confessar-te que não é por acaso que me encontro no teu caminho. Na verdade, já te tenho visto a correr por aqui."

"Então andas a seguir-me, é isso? Por isso arriscaste os teus espinhos?"

"Calma!" - o seu tom de voz era agora mais tranquilo. "Já vais perceber tudo..."

O que aconteceu então deixou-me perfeitamente atónito. Da floresta que bordejava o caminho surgiram num ápice dezenas de bichos, num burburinho acalorado. Coelhos, cobras, esquilos, texugos, salamandras, ratos do campo, várias espécies de pássaros, algumas que desconhecia. Todos eles se aproximaram de nós voando, rastejando, caminhando... Continuei boquiaberto, mas a minha estupefacção transformou-se num largo sorriso.

"Que fazem todos aqui? Uma assembleia dos animais da floresta?"
Gerou-se uma algazarra em que todos pareciam querer falar ao mesmo tempo. Outros limitaram-se a sorrir. A dada altura, uma voz emergiu daquela turba ululante e aos poucos todos se calaram. Era a coruja, a quem os outros animais nitidamente consideravam o porta-voz do grupo.
"Nós estamos aqui por causa de um assunto muito sério, que nos aflige a todos." E prosseguiu: "Desde que construíram aqui ao lado a via rápida, a nossa vida tornou-se bastante mais perigosa. Posso mesmo dizer que a nossa qualidade de vida se reduziu de modo exponencial! Muitos animais tiveram de fugir daqui, o que alterou a qualidade deste habitat! E o pior de tudo é que já todos nós perdemos familiares atropelados por esses monstros assassinos! "

Os outros animais anuíam em silêncio, e ficaram visivelmente emocionados, lacrimejantes mesmo, ao recordar os seus queridos que haviam partido... Eu ainda continuava aturdido, agora não tanto por estar a ouvir animais a falar mas pelo escorreito e eloquente discurso da coruja. Mas ouvi-a atentamente; no final, não pude deixar de reconhecer:
"Em verdade vos digo..." (era assim que Jesus começava muitas das suas alocuções às multidões) "de facto, a espécie humana é de longe o maior factor de perturbação dos ecossistemas, é o Homem que mais destrói o planeta, mas é igualmente certo..."

"Vá lá, diz-nos algo que ainda não saibamos!", interrompeu um esquilo de voz aguçada pela ira. " Estamos cansados de ser desprezados, maltratados pelos humanos! Temos de pôr cobro a isso! Queremos fazer ouvir a nossa voz!"

"O que o esquilo quis dizer", rematou a coruja num tom moderado "é que decidimos abordar-te para que faças chegar os nossos anseios a quem de direito, para que todos os homens saibam quem somos, e talvez aí parem este morticínio."

"E como poderei fazer isso? Não estão certamente à espera que vá contar a alguém que estive a falar com os animais da floresta! Vão pensar que enlouqueci!"


"E não te esqueças da minha situação particularmente melindrosa!" Era a cobra a tomar a palavra. "Por causa dessa história bíblica dos primórdios do Homem, nós, as cobras, somos visceralmente" - disse esta palavra de forma sibilina como só uma cobra - "odiadas por todos, que nos tentam matar gratuitamente. Ainda na semana passada duas crias minhas foram mortas por agricultores enquanto apanhavam sol junto ao charco..."

Neste momento a voz da cobra esganiçou-se até se sumir, enquanto baixava a cabeça. Quase juraria, não fosse o caso de tratar-se de um réptil, que as lágrimas lhe assomariam rapidamente aos olhos viperinos. Os coelhos aproximaram-se condoídos, a tentar consolá-la, mas mantiveram uma certa distância. Afinal, uma cobra sempre é um predador...

"Mas como posso eu ajudar-vos?" - repeti, ainda com a voz embargada pelos últimos momentos. "A não ser... a não ser que vos leve ao programa do Goucha! Aposto que ele poderá resolver a vossa situação!"
Logo se levantou um coro de protestos:
"Ao programa do Goucha, na 4? Mas que terrível falta de gosto!!!" Desta vez fiquei estarrecido, quase caí para o lado. Então até os animais da floresta sabiam da existência do Manuel Luís Goucha?
Apercebendo-se da minha indisfarçável surpresa, a coruja explicou: "Na semana passada os ratos do campo ouviram uma conversa entre agricultores enquanto estes vindimavam, e eles falaram desse tal Goucha, e que ele tinha um programa onde iam convidados de toda a espécie."
"Conheço alguém que trabalha na produção do programa do Goucha. Vou entrar em contacto com essa pessoa e logo se arranjará. Verão que em três tempos lá estarão em estúdio. E olhem que o Goucha tem uma vasta audiência!"

Os animais pareciam algo desapontados com a solução encontrada, mas para não parecerem malcriados (os animais também têm as suas regras de etiqueta, como sabem) lá se ouviram uns tímidos e pouco entusiasmados "Obrigado!" e "Que bom..."
"Para além disso, também conheço um jornalista freelancer que trabalha amiúde para o "24 Horas" e "O Crime". Decerto ele fará uma reportagem onde dissecará - não literalmente, claro - o vosso quotidiano. E olhem que são jornais de grande tiragem!!!"
"O que é um jornalista fri.. fri... o que é isso?" - indagou o texugo. Mas a coruja tomou a palavra e todos os olhares se voltaram para si:

"Agradecemos-te toda a colaboração e quero deixar-te, em nome de todos nós, o nosso mais profundo obrigado. Estou certo que te devemos o retorno a uma vida tão normal quanto possível na nossa floresta. E a partir de hoje saudar-te-emos sempre que passares por aqui... Ganhaste vários amigos leais hoje, podes estar certo disso! O nosso muito obrigado mais uma vez!"

Apesar de o aplauso que irrompeu não ter primado pela efusividade, não pude deixar de me comover perante estas palavras... Os animais voltaram para a floresta, conversando entre si. E eu continuei o meu percurso habitual.

O certo é que os animais nunca mais voltaram a falar comigo. Quando corria no caminho onde tudo aconteceu, parava no sítio onde estivemos, mas nada. E quando me cruzava com outros animais falava-lhes, mas eles não me retorquiam... Os mails que enviei aos meus contactos do "Você na TV" e dos jornais não obtiveram resposta. E agora ouço dizer por aí que estou a perder o tino... Mas a esses humanos não volto a dirigir palavra!

2 Comments:

Blogger Zeca Campos usou da palavra

Parabéns pelo teu texto.
Agora tens que me apresentar esses teus amigos animais.
Porque eu conheço uns animais de pessoas mas não os compreendo.

Talvés falando com animais animais possa compreeender animais pessoas.

08 dezembro, 2005 02:31  
Blogger Aladdin Sane usou da palavra

"As pessoas comportam-se como cães quando precisam das outras, andando à volta delas abanando a cauda (?); mas quando os outros precisam de nós tornamo-nos gatos indiferentes e altivos".

E as pessoas somos nós...

08 dezembro, 2005 03:28  

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