30 de dezembro de 2005

Falo

Tive de o fazer, não aguentava mais aquele tormento que, quando menos o esperava, voltava a aterrorizar-me, e de cada vez com maior intensidade. Era sinistro, arrepiante, tinha de pôr cobro a isso enquanto era ainda possível.

Foi a meio de uma noite mal dormida que o meu suplício começou, literalmente, a tomar forma. Senti algo a remexer-se por debaixo do pijama. Desnudei-me e, no lugar do falo, estava um cão a emitir pequenos gemidos. Se já viram um cão recém-nascido poderão visualizar a criatura em que se havia acabaado de transformar a minha genitália. De olhos ainda fechados, corpo lisinho e húmido, as orelhas ainda coladas ao dorso, as narinas a farejar pela primeira vez... Soltei um urro incontido de terror! "Estarei a sonhar?" - pensei. Mas não, aquilo estava ali! Subitamente, veio a acalmia: olhei de novo, ainda temeroso, e o cãozinho estava já candidamente adormecido.

Nesse dia não conseguia raciocinar, tal era a angústia que sentia. Fiz a minha rotina diária, de casa para o escritório, almoço na Baixa, encomendei o jantar, internet à noite. Procurei descobrir num motor de busca uma qualquer explicação para o sucedido, mas nada (o que só aumentou o meu temor).

E a meio da noite novamente o sobressalto, agora com mais vigor nos latidos que soltava, o pequenomonstro voltava a despertar e a arrancar-me gritos dementes! (Teria fome? Que podia fazer?). Mas poucos minutos durou o tumulto, pois o bicho logo voltou a aquietar-se. Só eu não voltei a adormecer nessa noite, pensando no que se poderia vir a tornar a minha vida a partir daí.

Na terceira noite não consegui aguentar. Eram 4:48 quando os seus gemidos agonizantes me arrancaram do sono obtido à custa de antidepressivos. Esperei em vão pelo seu cansaço, mas o diabo do cão parecia possuído (e não estaria antes eu dominado por uma qualquer entidade malévola?)
O chinfrim parecia interminável, até que não consegui aguentar mais. Fui à cozinha, escolhi a maior das facas que encontrei, fiz pontaria, cerrei os olhos, rangi os dentes... Antes de desmaiar pude ainda ver o canídeo inconsciente, tombado ao lado do meu corpo. Lembro-me de ter pensado: "Paz, finalmente!"

Recuperei os sentidos já no hospital. O enfermeiro contou-me que tinha sido uma vizinha a alertar a polícia. Disse-me também que os paramédicos tiveram de regressar ao apartamento com um saco de gelo para recolherem o meu pénis. "E não acharam nada de estranho nele?" - perguntei esperançado. "Hummm... não, ao que parece nada de anormal havia. Seria um pénis como tantos outros." - respondeu-me, cofiando o bigode e fazendo um trejeito esquisito nos lábios.

Nessa mesma tarde um psiquiatra veio ter comigo. Contei-lhe todos os pormenores da mutação que me atormentara e conduzira à mutilação do órgão genital. Ouviu-me atentamente e deu-me, segundo as suas palavras, "uma óptima notícia". Ainda estavam reunidas as condições para uma cirurgia de reimplantação do membro amputado.

A operação foi bem sucedida: três semanas depois voltei a casa, fortemente medicado para evitar complicações do foro anatómico (pelo menos foi o que me foi dito). Fui também mantido sob apertada vigilância médica, com uma sessão semanal com uma psiquiatra.

Tudo parecia ter regressado enfim à normalidade, quando uma noite voltei a ouvir aquele som que julgava para sempre varrido da minha mente. E fitei-o estarrecido: lá estava ele de novo, o cão recém-nascido a uivar, a ganir, a gemer, a contorcer-se! Foi demais para mim. Corri até à cozinha e voltei a separar aquele monstro horrível do meu corpo. Mas desta vez, num assomo de lucidez, chamei Adolf, o meu gato siamês. Dominando a repulsa (e as dores) que sentia, peguei no canídeo que jazia ensanguentado no chão da cozinha e dei-o ao gato, que o devorou com sofreguidão. E experimentei, antes de voltar a desfalecer, uma sensação de alívio: afinal acabara de me livrar daquela terrível aberração para sempre.

(Aviso prévio: este texto contém linguagem que poderá ser considerada ofensiva para quem nela detecte uma conotação sexual)

8 Comments:

Blogger Bel usou da palavra

A imaginação é um Dom!
Acho que vais gostar de ler " metamorfose" de FRANZ KAFKA.
fica bem

31 dezembro, 2005 19:21  
Blogger Aladdin Sane usou da palavra

Dom José Policarpo, Dom Duarte de Bragança, Don Vito Corleone... esses sim, têm imaginação! Já li "A Metamorfose" há uns anitos... Bom Ano!

31 dezembro, 2005 19:46  
Blogger Zeca Campos usou da palavra

...falo, mas que falo?
Estou a ver que voçês não "falam" nada.

01 janeiro, 2006 02:14  
Blogger Aladdin Sane usou da palavra

Falo do falo, pois então!

01 janeiro, 2006 02:41  
Anonymous Anónimo usou da palavra

hummm........já sei pq anda a dormir tão mal..nem deixa dormir!! ih ih ih

01 janeiro, 2006 19:54  
Anonymous Anónimo usou da palavra

Anda por aqui muito Sarah Cane!!!
Julgavas que as 4:48 passavam despercebidas? Lê mas é o al-coirão! Isso sim é um grande livro! (Ainda não editado por mim, mas qualquer dia...)
Xau e bom ano novo!

03 janeiro, 2006 17:31  
Anonymous Anónimo usou da palavra

Já dizia a Amália:
- Quem faz um filho fá-lo por gosto! Ou seria...
- Quem faz fá-lo, e o falo fica com gosto!?

03 janeiro, 2006 18:05  
Blogger Aladdin Sane usou da palavra

Ó deus desvairado! Viva a psicose! Leio o al-coirão no café (falo de "A Bola", o jornal que me abala). Bom Ano Noivo, com malmequeres e goivos!

04 janeiro, 2006 19:34  

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