Pois, quer grande confusão na cabeça do ditador – pensava Sérgio. Notava agora que o temperamento de Salazar oscilava entre a euforia, quando se falava das sensuais acompanhantes que pretendia contratar e a lucidez de quem regressara por motivos mais consensuais, digamos assim. (Seria Salazar bipolar?, perguntara-se). E, sem se dar conta, tratara-o de novo por Toni; ele não reagira, o que levara Sérgio a concluir que o velho ditador – se é que se pode chamar velho a um espírito – não se importara. Foi nesse momento que decidiu tentar tirar partido da situação. Afinal, Salazar visitara-o, interrompendo-lhe o sono. E decidiu que era chegada a altura de aquilatar da anuência do espírito para com uma ideia que lhe perpassou a mente:
- Lembrei-me de um pormenor... poderia haver um impedimento ao projecto de trazer as meninas de volta à escola. É que a escola… ainda tem alunos.
- Oh! – exclamou Salazar, batendo com a palma da mão esquerda no queixo. Começava a sentir o desânimo característico de quem vê o projecto de uma vida, ou de depois de uma vida, soçobrar. Sentiu-se subitamente impotente. – É coisa de que me não lembrei deveras! Então e agora? – indagou, alisando o cabelo com as mãos.
- Fácil, meu caro, muito fácil! – respondeu Sérgio Pinto, triunfante. (Pois o rapaz já merece um sobrenome) – Também pensei nisso! Basta que os alunos transitem para a escola da cidade, e resolve-se o problema. Compramos – Sérgio empregou deliberadamente o verbo no plural, e durante a brevíssima pausa que fez reparou a expressão de satisfação expectante de Salazar não se alterara, - compramos, dizia, o edifício, requalificamo-lo e só teremos de proceder aos castings. E terei todo o prazer em ajudá-lo!
- Bravo, meu rapaz! – Salazar, sorridente, dava-lhe palmadas no ombro.
- E até já sei de um nome para este projecto. E que tal… - pausa deliberada – “Novas Oportunidades – novas aprendizagens nos bancos da escola”! Sim, no fundo estaremos a conceder uma segunda oportunidade a estas senhoras, dotando-as de novas competências, de novos processos educativos, recorrendo amiúde a jogos lúdico-didácticos.
Salazar quase salivava ao ouvir Sérgio.
- Mas que grandes ideias estás a ter!
- Ah, sabe, tenho um curso de Marketing Revolucionário na Universidade Incoerente e um Mestrado em Didaxiologia Trans-freudiana obtido na Universidade Estupefaciente. – Sérgio não conseguiu disfarçar o orgulho que sentia ao revelar as suas qualificações académicas. Mas também não tentou fazê-lo.
- Estou assombrado! Maravilhado! – Salazar preparava-se para acrescentar “e embasbacado”, mas não o fez. Afinal tal afirmação não estava em consonância com a sua posição na hierarquia nacional de há poucas décadas atrás.
- E é importante que este estabelecimento tenha…
- Já sei, livro de reclamações, não é? Pfffff, ora bolas! – o ditador mostrava-se visivelmente desagradado com a ideia.
Por um momento, Sérgio olhou em volta, receando que alguma cadeira se partisse. Por isso, logo respondeu:
- Não! – e de súbito encontrava-se num ponto bastante próximo da excitação. – Refiro-me ao serviço educativo! É importante que esta instituição tenha serviço educativo, de preferência com umas técnicas que saibam expressar-se muito bem oralmente e com uma postura corporal adequada. Podemos dar formação nesses campos, se nos aprouver. – Sérgio sentia que a confiança de Salazar estava definitivamente conquistada e que este estaria prestes a convidá-lo para exercer um qualquer cargo de monta. Salazar estava extasiado:
- Sim! Sim! Magnífico! Que ideias esplendorosas! Anda cá, venham daí esses ossos!
Aproximou-se de Sérgio e abraçou-o efusivamente. Não perguntem como, mas assim foi. E quando se separaram, mantiveram-se em silêncio durante largos momentos. Dir-se-ia que, se fossem fumadores, ambos teriam nessa altura apreciado o inigualável sabor de um cigarro.
Minutos depois, Sérgio inquiriu:
- Há outra coisa em que estou também a matutar. Não seria também uma boa ideia haver uma Casa – Museu, mas de carácter mais institucional?
- Sim, tens toda a razão. – anuiu Salazar. - E poderia muito bem ser feita aqui.
- O quê? Nesta casa? Foi aqui que viveu, não é verdade? – Sérgio tratava de novo Salazar com a deferência da primeira conversa.
- Pois. Bem vistas as coisas, isto precisa de umas valentes obras. Mas tenho andado por aqui a vaguear e até já tenho algumas ideias.
- Mas repare bem neste espaço. Acha que se adequa à monumentalidade de um museu?
Decidiram então passear pela exígua habitação. A ameaça de derrocada era por demais evidente; por isso, Sérgio avançava cautelosamente, medindo os passos. Na cozinha observaram algumas loiças que se mantinham penduradas, mas nas restantes divisões já quase não se viam objectos. Salazar abriu alguns caixotes no corredor:
- Olha! – referiu, visivelmente emocionado. – Os meus escritos, as canetas, os meus binóculos!
- Bem, - Sérgio procurou que a sua voz não denunciasse o desapontamento que sentia. – temos aqui peças importantes que poderão fazer parte do acervo do Museu. Aliás, tudo o que já vimos poderá fazer parte dele, depois de alguns pequenos restauros, claro está.
- Mas ainda não viste o melhor! Desçamos à adega que tinha na cave.
E assim fizeram. Salazar mostrou a Sérgio as pipas de vinho que ali permaneciam. E os cântaros. E a prensa. E Sérgio cada vez mais enfadado, ouvindo-o descrever o processo da fabricação do vinho. Mas, algo surpreendentemente, Salazar disse:
- Sabes? Acho que, em vez de vinho, vou mas é apostar na produção de azeite.
- E porquê o azeite? – perguntou o rapaz, não sem estranheza.
- É que a minha imagem ficou denegrida quando disse que beber vinho era dar de comer a um milhão de portugueses. Fui mal interpretado.
- Pudera, num país analfabeto as más interpretações não são de estranhar. – disse-o a meia voz, após o que fitou o antigo ditador, que ainda assim o ouvira. Mas Salazar fez-se de novas e prosseguiu:
- E o Cardeal Cervejola até me deu uma sugestão para o nome do azeite e até um slogan : “Salazar: o azeite salutar!” Parece-me genial! Não concordas?
- Sim – assentiu Sérgio depois de reflectir por uns instantes. – é uma frase
catchy!
- Santinho!
- Mas para isso é preciso investir muito, em maquinaria, plantar oliveiras, contratação de pessoal… tudo isso encarecerá o projecto… não?
- Também já pensei nisso! Olha, sou um pouco como a Tefal! Ih, ih, ih! – E riu. Sozinho. – Quem trará as azeitonas serão os visitantes do museu. E participarão, mediante um pequeno pagamento, que até pode ser efectuado em suaves mensalidades, na elaboração do azeite. Percebes? Não é à toa que dizem que era entendido em finanças!
“Bota de elástico” foi a expressão que assomou a Sérgio. Mas rematou a conversa com outra tirada:
- Entendo, sim. Então os visitantes serão os verdadeiros azeiteiros!
- Podemos dizer isso… não desfazendo, claro! Eu gostava mesmo era que se mantivesse o galinheiro que ali está.
- E posso perguntar porquê?
- É que – Salazar falava agora em voz baixa, num tom quase impregnado de uma ternura triste. – gosto de ficar a ver as galinhas, observo-as durante horas, por vezes. E, volta e meia, até falo com elas.
Sérgio não respondeu. Não poderia. A emoção turvava-lhe os olhos. Mas turvava-lhos intensamente, como se comungasse dos sentimentos do espírito que lhe falava. Espírito esse que não se apercebeu do marejar dos olhos de Sérgio, e continuou:
- E ali, naquele espacinho à entrada da casa, onde estacionaste o carro, erigir-se-á um pequeno e discreto templo. Com uma caixa que será chamada de “Salazaríssimo”. A almotolia terá sempre azeite. Azeite Salazar, claro está. E mensalmente realizar-se-á uma procissão pelas ruas da aldeia. A procissão do Salazaríssimo, está bom de ver. E, uma vez por ano, já que eu estou impedido pelo artigo 118, alínea c do Estatuto dos Fantasmas de Ditadores, de aparecer a mais de duas pessoas em simultâneo, contratar-se-ia um actor para incarnar a minha personagem e dramatizar um episódio marcante do Estado Novo.
- Hummm... Sérgio cofiava a barba de dois dias. – Esse último capaz de exceder o orçamento de que disporemos. – imaginava-se já a receber um salário bem mais reduzido, por via da contratação do actor que seria “pago a peso de ouro”.
- Tens razão. Nem parecia meu todo esse despesismo... só é pena não se poder mandar encerrar a via rápida. - Salazar apontava a estrada ali mesmo nas traseiras da casa. Paciência. Restrinjamo-nos então aos outros projectos. De acordo?
Sérgio assentiu, meneando a cabeça, tentando ainda assimilar todos os planos do antigo ditador. E então foi a sua vez de sugerir:
- Então e que tal se aproveitássemos também o belo Dão? Podíamos construir barcaças para os visitantes darem um passeio por estas belas águas!
- Ah! Por momentos cuidei que te referias ao vinho! Sim! Sim! E os barcos seriam em forma de bota! – os olhos de Salazar faiscavam agora de emoção. – E para tornar as coisas mais emocionantes, arranjávamos um sistema em que os barquinhos começassem a meter água durante a viagem, ameaçando ir ao fundo! Isso sim, seria uma viagem recheada de aventuras! Estou tão feliz, isto é como regressar aos meus gloriosos tempos... Ah, rapaz, parece que já consigo antever o Vimieiro daqui alguns anos, depois da abertura desta obra! Ora aproxima-te e olha-me fixamente nos olhos, para veres também.
- Como? Dá para ver isso através dos seus olhos?
- Sim, basta que os olhes fixamente – repetiu. - Este projecto vai dinamizar, para não dizer dinamitar, a economia local!
Então, e não sem algumas cautelas, Sérgio aproximou-se de Salazar e entreolharam-se. Uns instantes depois, Sérgio viu isto:
Escusado será dizer que esta visão o deixou transido, estado de que demorou algum tempo a recompor-se.
(e falta pouco)Vídeo _ Chris Cunningham para "Come To Daddy" de Aphex Twin