Este Salazar que vos fala (parte um)
Ser acordado às duas horas da manhã é uma sensação difícil de descrever. Ser arrancado dos braços de Hipnos depois de três horas de um sono que pretendia retemperador é, poder-se-á afirmar, como acordar bruscamente às cinco da tarde depois de uma sesta iniciada às três – com a diferença de, no primeiro caso, se ter dormido mais meia-hora.
Foi assim, que, às duas da manhã de uma destas noites, Sérgio ouviu uma voz que o chamava. No início pareceu-lhe que sonhava, enquanto despertava com vagar. Acendeu o candeeiro e voltou a cabeça na direcção da janela, deparando-se com um vulto cujos contornos se foram progressivamente tornando mais nítidos.
- Acorda, Sérgio! – disse-lhe o vulto. – É tempo de te levantares!
Um olhar de viés para o despertador levou-o a reclamar. – São duas horas! Quero dormir! – Ao invés, Sérgio voltou-se de novo para a figura que, de súbito, lhe pareceu vagamente familiar. Fitaram-se em silêncio: o desconhecido sorria, Sérgio mirava-o desconfiado.
- Avô! - exclamou subitamente. - Que fazes aqui? A que se deve esta visita?
O sorriso do seu interlocutor desvaneceu-se num esgar que denunciava a confusão que o assolara. Ao ver a sua expressão, Sérgio logo disse:
- Espere aí, você não pode ser o meu avô. (Que parvoíce!) O meu avô morreu há quase trinta anos. Desculpe tê-lo confundido, mas a sua cara pareceu-me familiar... e é mesmo parecido com ele. Queira desculpar-me, sim?
- Tudo bem, rapaz! – e voltou a sorrir. – Eu nunca poderia ser o teu avô. Morri alguns anos antes dele, em 68. Sou o Salazar, Presidente do Conselho.
- Ah, bem me parecia! Desculpe, é que são mesmo parecidos, no porte, na fisionomia, até no cabelo! E o meu avô também trajava de cinzento, do pouco que me lembro dele.
- Ih, ih! Devia ser um admirador meu, decerto!
O petiz preparava-se para contradizê-lo, dizendo que o seu avô até ficara secretamente satisfeito aquando do seu passamento, mas não o fez por cortesia. Em vez disso, esboçou um sorriso, tentando que este parecesse suficientemente vago para não dar azo a desconfianças. E o velho prosseguiu:
- Bom, vim ter consigo porque estou a precisar... – começou por dizer. Mas Sérgio estendeu a mão aberta com a palma voltada para ele, num gesto que lhe deteve o discurso. Depois apontou essa mesma mão – a direita – para o despertador.
- Olhe, tenho de dizer-lhe que apareceu a uma hora assaz inconveniente. Tenho de levantar-me de manhã cedo e agora não poderei continuar esta conversa. Lamento.
- Mas então...
- Apareça pela manhãzinha depois das nove e meia, que estarei por aqui, pode ser... senhor Salazar? – E, mal lhe dando tempo para assentir, deitou-se e voltou a cabeça na outra direcção. Momentos depois, pensando na desfaçatez que era interromper o seu precioso sono, ouvia ainda uma respiração pausada. Sem se mexer, resmungou um “ainda aí está?” ao que Salazar respondeu em voz baixa: “Mil perdões... vou deixá-lo então. Até amanhã!” E apagou-lhe a lâmpada do candeeiro, coisa que Sérgio se esquecera de fazer.
Tentou voltar a adormecer, pensando no que acabara de ocorrer. Nunca havia sido visitado durante o sono por pessoas mortas. Sentia-se aliviado por a conversa ter sido tão curta, pois uma das suas grandes dificuldades consistia precisamente em manter uma conversação dita social por muito tempo. (A não ser, é claro, que estivesse levemente embriagado). Mas sentiu-se simultaneamente aliviado: ao menos com o ditador sempre podia manter uma conversa sobre vários assuntos, desde a actualidade a temas da sua época áurea – por assim dizer. Se fora o seu avô paterno, como de início suposera, a conversa rapidamente ficaria entravada, pois as suas recordações do ancião eram muito vagas: sabia que era do Benfica, que tinha uma voz que o amedrontava, apesar da simpatia que sempre demonstrava para consigo, e pouco mais. Por outro lado, pensou ainda, seria uma óptima oportunidade para reatarem o elo perdido abruptamente aquando da sua morte. Embalado por estes e outros pensamentos, acabou por adormecer bastante tarde – lembra-se de ter visto as horas no despertador às 4:48. Recorda-se ainda de ter sentido calor na cama, e de se ter, por isso, aliviado - assim, despiu o pijama do Snoopy, tendo vestido um mais fresco, já que as noites primaveris se tornavam progressivamente menos frias.
- Bom dia, jovem! Antes de mais peço desculpa pela minha aparição intempestiva. E pelo que me pareceu, fui a tua primeira aparição.
- Tudo bem, já nem me lembrava disso. Sim, você foi a minha primeira aparição. Antes disso, apenas tinha sonhado com a Sofia Aparição, mas nada mais.
- Ah, sim? Interessante! – comentou, afagando repetidamente o queixo com o polegar e o indicador da mão direita. Por esse gesto e pela expressão aquilina do seu rosto Sérgio apercebeu-se que Salazar apreciava a Sofia Aparição. Ou então o seu jogo de palavras confundira-o.
- Caso não tenhas reparado, apareci mais tarde. Notei que te custou adormecer, por isso deixei-te dormir umas horas mais, não quis estragar-te um belo Sábado de manhã.
- Obrigado, é muita bondade da sua parte - replicou o jovem, num tom levemente sarcástico. - E como soube que tive dificuldades em voltar a dormir?
- Sou um espírito; os espíritos acompanham sempre as pessoas desde que as visitam pela primeira vez, ainda que não presencialmente. – fez uma pausa. Reparou na expressão de surpresa no rosto de Sérgio e tentou tranquilizá-lo: - Não te preocupes, não perceberias de qualquer modo. Mas assevero-te que vim visitar-te por bem.“Vindo de quem vem, isso é tranquilizador. Muito.” – pensou o rapaz. Voltou-se para Salazar, esperando que os espíritos não lessem os pensamentos às pessoas. A inexpressividade na sua face aquietou-o.
Foi assim, que, às duas da manhã de uma destas noites, Sérgio ouviu uma voz que o chamava. No início pareceu-lhe que sonhava, enquanto despertava com vagar. Acendeu o candeeiro e voltou a cabeça na direcção da janela, deparando-se com um vulto cujos contornos se foram progressivamente tornando mais nítidos.
- Acorda, Sérgio! – disse-lhe o vulto. – É tempo de te levantares!
Um olhar de viés para o despertador levou-o a reclamar. – São duas horas! Quero dormir! – Ao invés, Sérgio voltou-se de novo para a figura que, de súbito, lhe pareceu vagamente familiar. Fitaram-se em silêncio: o desconhecido sorria, Sérgio mirava-o desconfiado.
- Avô! - exclamou subitamente. - Que fazes aqui? A que se deve esta visita?
O sorriso do seu interlocutor desvaneceu-se num esgar que denunciava a confusão que o assolara. Ao ver a sua expressão, Sérgio logo disse:
- Espere aí, você não pode ser o meu avô. (Que parvoíce!) O meu avô morreu há quase trinta anos. Desculpe tê-lo confundido, mas a sua cara pareceu-me familiar... e é mesmo parecido com ele. Queira desculpar-me, sim?
- Tudo bem, rapaz! – e voltou a sorrir. – Eu nunca poderia ser o teu avô. Morri alguns anos antes dele, em 68. Sou o Salazar, Presidente do Conselho.
- Ah, bem me parecia! Desculpe, é que são mesmo parecidos, no porte, na fisionomia, até no cabelo! E o meu avô também trajava de cinzento, do pouco que me lembro dele.
- Ih, ih! Devia ser um admirador meu, decerto!
O petiz preparava-se para contradizê-lo, dizendo que o seu avô até ficara secretamente satisfeito aquando do seu passamento, mas não o fez por cortesia. Em vez disso, esboçou um sorriso, tentando que este parecesse suficientemente vago para não dar azo a desconfianças. E o velho prosseguiu:
- Bom, vim ter consigo porque estou a precisar... – começou por dizer. Mas Sérgio estendeu a mão aberta com a palma voltada para ele, num gesto que lhe deteve o discurso. Depois apontou essa mesma mão – a direita – para o despertador.
- Olhe, tenho de dizer-lhe que apareceu a uma hora assaz inconveniente. Tenho de levantar-me de manhã cedo e agora não poderei continuar esta conversa. Lamento.
- Mas então...
- Apareça pela manhãzinha depois das nove e meia, que estarei por aqui, pode ser... senhor Salazar? – E, mal lhe dando tempo para assentir, deitou-se e voltou a cabeça na outra direcção. Momentos depois, pensando na desfaçatez que era interromper o seu precioso sono, ouvia ainda uma respiração pausada. Sem se mexer, resmungou um “ainda aí está?” ao que Salazar respondeu em voz baixa: “Mil perdões... vou deixá-lo então. Até amanhã!” E apagou-lhe a lâmpada do candeeiro, coisa que Sérgio se esquecera de fazer.
Tentou voltar a adormecer, pensando no que acabara de ocorrer. Nunca havia sido visitado durante o sono por pessoas mortas. Sentia-se aliviado por a conversa ter sido tão curta, pois uma das suas grandes dificuldades consistia precisamente em manter uma conversação dita social por muito tempo. (A não ser, é claro, que estivesse levemente embriagado). Mas sentiu-se simultaneamente aliviado: ao menos com o ditador sempre podia manter uma conversa sobre vários assuntos, desde a actualidade a temas da sua época áurea – por assim dizer. Se fora o seu avô paterno, como de início suposera, a conversa rapidamente ficaria entravada, pois as suas recordações do ancião eram muito vagas: sabia que era do Benfica, que tinha uma voz que o amedrontava, apesar da simpatia que sempre demonstrava para consigo, e pouco mais. Por outro lado, pensou ainda, seria uma óptima oportunidade para reatarem o elo perdido abruptamente aquando da sua morte. Embalado por estes e outros pensamentos, acabou por adormecer bastante tarde – lembra-se de ter visto as horas no despertador às 4:48. Recorda-se ainda de ter sentido calor na cama, e de se ter, por isso, aliviado - assim, despiu o pijama do Snoopy, tendo vestido um mais fresco, já que as noites primaveris se tornavam progressivamente menos frias.
- Bom dia, jovem! Antes de mais peço desculpa pela minha aparição intempestiva. E pelo que me pareceu, fui a tua primeira aparição.
- Tudo bem, já nem me lembrava disso. Sim, você foi a minha primeira aparição. Antes disso, apenas tinha sonhado com a Sofia Aparição, mas nada mais.
- Ah, sim? Interessante! – comentou, afagando repetidamente o queixo com o polegar e o indicador da mão direita. Por esse gesto e pela expressão aquilina do seu rosto Sérgio apercebeu-se que Salazar apreciava a Sofia Aparição. Ou então o seu jogo de palavras confundira-o.
- Caso não tenhas reparado, apareci mais tarde. Notei que te custou adormecer, por isso deixei-te dormir umas horas mais, não quis estragar-te um belo Sábado de manhã.
- Obrigado, é muita bondade da sua parte - replicou o jovem, num tom levemente sarcástico. - E como soube que tive dificuldades em voltar a dormir?
- Sou um espírito; os espíritos acompanham sempre as pessoas desde que as visitam pela primeira vez, ainda que não presencialmente. – fez uma pausa. Reparou na expressão de surpresa no rosto de Sérgio e tentou tranquilizá-lo: - Não te preocupes, não perceberias de qualquer modo. Mas assevero-te que vim visitar-te por bem.“Vindo de quem vem, isso é tranquilizador. Muito.” – pensou o rapaz. Voltou-se para Salazar, esperando que os espíritos não lessem os pensamentos às pessoas. A inexpressividade na sua face aquietou-o.
Era chegado o momento de indagá-lo acerca do motivo da sua inusitada visita.
(continua)
2 Comments:
De certeza que era o fantasma de Salazar? Salazar não morreu, está vivo. Ainda no outro dia estive a beber café com ele no "Justiça e Paz". Eu acho que o espírito que apareceu ao Sérgio foi o de Adriano Moreira.
Não, deve ter sido o espírito de Sarah Kane! Pelo menos é uma mulher: é que às 4:48 há muita psicose no ar!
Enviar um comentário
<< Home