4 de abril de 2007

Este Salazar que insiste em falar-vos (parte três - and counting)

Enquanto se banhava, Sérgio não parava de pensar em Salazar. A dada altura, pensava, parecia-lhe que o seu discurso se tornara incoerente. Pressentia que algo de estranho teria acontecido, uma mudança quase imperceptível no seu tom de voz e na sua postura, que se tornara estranha e inverosimilmente mais informal. “Ou então seria imaginação minha”, pensou ainda. Terminado o duche, abriu a cortina e apanhou um dos maiores sustos dos últimos tempos. Salazar jazia de pé, mesmo junto dele.

- Mil perdões, rapaz. – disse. - Não pretendi assustar-te – e baixou os olhos, visivelmente constrangido.

- Não… não tem importância. – titubeou Sérgio. – Se não se importa, conceda-me só um momento, para me arranjar.

- Oh sim, claro! Até já, então! Aguardarei por ti na sala. – E esfumou-se no ar perante o incrédulo olhar de Sérgio. O fumo deixara no ar um intenso odor a mofo e, depois de se secar cuidadosamente, abriu a janela da casa-de-banho.

Minutos depois, encontrava-se na sala, onde Salazar o aguardava, observando as fotografias emolduradas na parede.

- Afinal regressou, – afirmou Sérgio, fazendo com que o velho se voltasse na sua direcção. – pensei que há pouco se tinha despedido e voltado para lá… para onde quer que estivesse.

- Despedi-me? Quando? Não me recordo…

- No final da nossa conversa de há minutos, quando me falou da sua ideia de criar uma Casa-Museu dedicada ao Salazerotismo, Eroto-Salazarismo, ou lá o que era! - E riu. Riu com gosto. (Gostava de brincar com as palavras; faltava-lhe aprendê-lo).

Salazar não respondeu. Em vez disso, esboçou uma expressão meio pensativa, meio confusa e que seria ainda de desdém, não fosse o caso de duas metades perfazerem uma unidade. Até que irrompeu numa gargalhada rouca:

- Ah, está tudo explicado! Foi outra vez aquela doidivanas! Sempre a meter-se comigo, a macaca!

- Desculpe, não estou a segui-lo…

- Fique onde está. É o espírito da Ivone Silva, que quando lhe dá na veneta incarna a minha figura e faz-se passar por mim. Ao princípio ainda a ameacei, mas depois até comecei a achar-lhe piada. A mulher é cá uma finória, mas gosto dela, sabes? Ah, a marota da Ivone, não lhe perde o gosto…

- Então e como poderei ter a certeza que agora é mesmo com o senhor Oliveira Salazar que falo?

- Há um método infalível. Só tens de me ofender.

- Como? Não percebo…

- Insulta-me. Arremessa-me um impropério, ou vários! Pela minha reacção logo verás que sou mesmo eu. - E, gracejando, parafraseou Jesus Cristo: - “Sou eu, não tenhais medo!” Eheheh…

- Ora então, deixe cá ver… - disse o desafiado Sérgio, cofiando a barba rala no pescoço com ar pensativo. – Então cá vai disto. Você é um bafiento! Um bolorento!

- Mais! Mais! – Salazar estava visivelmente satisfeito com o que ouvia, a respiração ofegante, os dedos crispados agarravam com fúria o tecido indeterminado do colete.

- Um… chauvinista! Ditador de trazer por casa! Rústico!

- Aaaaaaaahhhh! Pára! Pára com isso! – nesta altura Sérgio interrompeu a sua breve catarse e olhou para o antigo ditador, aterrado. Salazar levara as mãos à cabeça, que mantinha inclinada para baixo. Na sua face, estranhamente avermelhada para um espírito, produziam-se contorções estranhas, como se aquele espírito estivesse a ser assediado – utilizando um eufemismo – por outro. Salazar gritou, com a saliva a escorrer-lhe abundantemente da boca (Salazar a salivar, portanto):

- Parem com isso! Parem com isso! Eu não adoro que vocês façam isso! Sou o maior! Sou o maior!

E, ensandecido, esticou o braço direito para o único cadeirão da sala, que se partiu com estrondo.

- Estás a ver? – disse Salazar, ainda ofegante mas já a compor o seu fato cinzento. - Acreditas agora que sou mesmo eu? "It is I, Salazar!" - E riu, entre o contrafeito e o original.

Sérgio não ousou responder. Estava petrificado, digamos assim, pelo temor e pelo assombro.

- Vá, meu rapaz, não temas! Era só uma brincadeira, e agora já não tens de duvidar!

- É… é isso mesmo. – O inconsolável Sérgio olhava o que restava da cadeira no chão.

- Mas então dize-me, – prosseguiu Salazar. - que patranhas te contou a Ivone? Estou em pulgas por saber!

Então Sérgio relatou-lhe todos os pormenores sobre o Museu do Nacional-Proxenetismo – foi a expressão que lhe acorreu na altura e que não se coibiu de empregar. Quando lhe falou nas secretárias e recepcionistas russas e brasileiras, Salazar interrompeu-o:

- Parece-te então que eu não me importaria de importar mão-de-obra desses países, soviéticas! vaderetro! quando as portuguesas estão cada vez mais sensuais e langorosas? No meu tempo é que eram quase todas uns belos camafeus, bigodudas e trajavam de negro, saias compridas, até metiam dó! Safa!

- Pois, - respondeu Sérgio, num sorriso trocista. – Só lhe falta dizer que se não estivesse morto e tivesse uns aninhos a menos muitas marchariam ao ritmo da sua batuta!

- Pois duvidas? É o marchas! - replicou Salazar, com um falso tom de orgulho ferido. - Agora, e mudando de assunto, numa coisa a Ivone tem razão. O motivo que me levou a visitar-te foi a construção de um museu, pequenino claro, uma coisa simples, dedicado à minha pessoa e, se não fosse pedir muito, ao regime que instituí e mantive.

- Ah, afinal queremos museu! Mas onde é que eu entro, no meio dessa história toda? É que, ao contrário do que me disse… aliás, do que a Dona Ivone me disse, não sou jovem artista! Sou apenas o recepcionista da Pousada do Colibri! – Tacteou os bolsos do casaco. – Devo ter aqui o cartão. O nosso lema é…

- “Pousada do Colibri – o seu sono é melhor aqui.”. Deixa, não procures mais. Já sei quase tudo a teu respeito. O motivo pelo qual te escolhi é simples: és a única pessoa num raio de trinta quilómetros que tem o dom de contactar com espíritos.

“Pois. Só que isso não é necessariamente bom.” – pensou Sérgio. – Quer então dizer que as bruxas, espíritas, etc. não conseguem de facto entrar em contacto com… entidades como o senhor?

- Nem me faças perder tempo com essas fraudes de terceira. Sabes, há uma senhora de idade que também consegue ver-me e ouvir-me, mas ela está um pouco surda... e vive longe, sabes como a gasolina anda cara...

-E eu que o diga, apesar de o meu carro ser a gasóleo.

- É, isto anda mal... Olha lá, podes ir agora ao Vimieiro comigo?

- Poder até posso! É já ali, como dizem os alentejanos.

- São vinte quilómetros. Então faz-te à estrada e continuamos a conversa depois, está bem? É melhor falar-te dos planos que tenho em sede própria.

- Como queira, vou pôr-me a caminho. E você, vai comigo de carro ou vai… hã… ou vai lá ter?

- Vou lá ter… não te preocupes, sei como te encontrar. É que, sabes, custa-me viajar a grandes velocidades. E ainda por cima, desde que fizeram a via rápida, tão perigosa…

- Mas o que poderá acontecer de mau a um espírito? Venha daí, para pormos a conversa em dia!

- Vais desculpar-me a teimosia, mas não gosto de apanhar sustos, sabes? Desejo-te boa viagem, e conduz com segurança, está bem? Então até já!

- Até login, - disse Sérgio. Salazar não o percebeu, mas não o deu a entender. Desapareceu – “outra vez este cheiro a mofo”, pensou Sérgio. “Vou ter de arranjar uma maneira polida de lhe dizer para começar a desaparecer fora de casa.”

E pôs-se a caminho. Rapidamente alcançou a via rápida, e dirigiu-se para Nordeste. Enquanto conduzia, relembrava os acontecimentos daquela noite e manhã e aguardava com expectativa o desenrolar da visitação.

(continua - quéssedezer, há mais de onde este veio)

5 Comments:

Blogger Aladdin Sane usou da palavra

Pois isto é como a história da Zezinha e do Pol Pot: "eu sei que você sabe que eu sei que você sabe" e por aí além. Pois se foi às 4.48 é porque esperava uma reacção falando no 4.48 espondilose, ou 4.48 psoríase, ou lá o que era. E sabias que reagiria à reacção, somos todos reaças! (Não desfazendo)

O Vladivostok é que podia mostrar um pouco mais do seu saber em línguas vivas. Na França, "se tu queres, tu podes", certo; mas não ficava mailindo se fosse: na França, "situvô, tupô?" Em francês é outra coisa, pá! Ainda ontem estivemos a falar sobre ti, eu e o Novosibirsk, enquanto víamos o Metalurg Donetsk - Karpaty Lvov (ficou 3-3) e dissemos que andas a ficar desleixado com as línguas. Foi isso mesmo, desculpa dizer-te assim de chofre, mas já está. Faz ver, que este nevoeiro nem deixa ver os carros.

04 abril, 2007 02:01  
Blogger Al Cardoso usou da palavra

Vamos la fazer o museu ao cavalheiro, depois de ser o mais portugues nao ha como negar-lhe esse direito!!!

Feliz Pascoa!

04 abril, 2007 08:54  
Blogger Zé Bonito usou da palavra

Um museu, claro, ao nível do concurso que ganhou: com muitos "neons", música pimba cantada por meninos e meninas com a farda da Mocidade Portuguesa e alteraçóes de cenário a pedido, via sms. Bora lá!

04 abril, 2007 13:11  
Blogger vladivostok usou da palavra

Senhor Mao, já que é "expert" em línguas vivas(e mortas)traduza-me para francês a seguinte expressão:

"Em França enquanto um trabalha, o outro descansa".

Traduza por favor e diga qual é a piada que tem esta expressão proferida em francês.

Pára com isso, ou chamo os raptores de crianças. E tu sabes que eu não adoro fazer isso!


P.S.- Continua mas com cuidado. Eles andam aí e levam-te para Peniche...

04 abril, 2007 15:42  
Blogger odeusdamaquina usou da palavra

Eu traduzo:
- En France quelq'un reste au bas- fond de mon travail collective!

Isto sim é inteligentsia francófona! De cabeçadas em Italianos para cima! Tudo aqui se faz em Glande. Os Glandes Franciús, lavam a cara e beijam os cus! Em memória da Páscoa e de Judas! E dos Cus de Judas!

04 abril, 2007 17:40  

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