sonhar é sonhar é sonhar
Foi uma carnificina que não aconteceu, logo explicada à luz do filme-do-mês primeiro e de Brecht-o-do-distanciamento depois, quando apenas um pesadelo foi sonhado na noite de borrasca, acordei a ouvir o bater da chuva no telhado e os trovões ribombavam ao longe despertei e mantive cada detalhe na minha memória e nenhum Freud - verdadeiro ou de ocasião – precisou de me explicar o sucedido, por assim dizer, Müller sonhava com gládios e mulheres mortas, eu sonhei com mutilações realizadas com precisão clínica sem quaisquer pruridos,
num dos seus sonhos-poema, Müller, enquanto caminhava por uma floresta, conseguiu ver na criança que lhe surgiu e lhe fez sinal de morrer o seu próprio rosto, o meu rosto olhou-me a criança era eu, disse
os sonhos são como a família não se escolhem, são aqueles e não outros, quando era novo infligi a mim mesmo um corte no braço e na nuca em frente aos meus amigos na mesa de café, não doía, a lata de sumo retorcida apenas um risco avermelhado, demorou uns dias a cicatrizar e eles a aparentarem normalidade nas reacções, como fiz – fizemos! – poucos anos depois quando o Adolf, assim o chamávamos com despudor, se levantou e tentou cortar-se em plena aula com uma faca das cantinas, nada lhe aconteceu, apenas um gesto algures entre a pequena tragédia e a comédia esforçada, gracejámos com o sucedido, alguém lhe rebuscou o quarto e encontrou aqueles escritos desconexos na sua letra quase indecifrável, falava de si na terceira pessoa, já se imaginava a falar com enfermeiras, virei a cara para o lado quando o vi poucas horas depois à porta de casa, como se houvera visto um fantasma, virei a cara para o outro lado e nesse lado não vi a sua expressão de sempre, entre a estranheza e a angústia velada, dias depois, enquanto ele folheava o Der Spiegel, perguntámos-lhe estás melhor e ele sim a sorrir desajeitadamente e voltámos a ouvir-lhe a célebre frase Os políticos são todos uns merrrdas! E a vida lá prosseguiu, o tempo não suspendeu o seu curso, como anos antes, isto anda para a frente e para trás, anos antes de novo no liceu, quando nos juntávamos nos intervalos naquela esquina daquele bloco, naqueles nadas com que nos cruzamos na juventude, usávamos botas de pedreiro e camisas de flanela com que dizíamos a toda a gente de boca fechada nós temos ideais, nós ainda temos ideais, só não sabemos muito bem quais são, mas quando formos mais velhos e os não tivermos saberemos do que se tratava afinal, ouvíamos música grunge e, sem sabermos muito bem porquê, ganhámos um porta-voz para a nossa revolta de adolescente que por ali pairava, por essa altura voltei a ser criança quando ela morreu num acidente de automóvel, já pouco nos falávamos mas nessa tarde à porta de casa pus-me a chutar a bola contra a parede repetidamente até que desatei a chorar, chorava pontapeando a bola, nessa tarde as minhas lágrimas e o meu ranho foram para ela,
-Mija! Mija!
Dois anos antes tínhamos sido colegas de turma e de mesa, brincando disse ao professor que se não podia ir à casa de banho ia fazer mesmo ali, houve risos pela sala, e ela pouco depois
-Mija!
Entre trocas de sorrisos
Alguém perguntava então ele já fez, eu nem estava para isso, mas pouco depois, mantendo-me sentado, cheguei-me à frente e discretamente fi-lo, o professor só soube dias depois, o feito heróico da semana
suponho que nesses dias tenhamos crescido mais rapidamente do que o desejável, naquela cidade-vila pequena como um ovo, daqueles em que temos de cortar várias rodelas até alcançarmos o amarelo da gema.