3 de junho de 2006

Os pontos negros

A Deco, associação de defesa do consumidor, iniciou uma campanha para combater os pontos negros nas estradas portuguesas. Gosto muito da DECO porque são uns eternos insatisfeitos, zelando pela qualidade de vida de todos nós. O meu vizinho Tó-Mi, que era heroinómano, contou-me uma vez que, por vezes, o “cavalito” que lhe chegava às mãos estava “marado”. Falei-lhe na DECO e na sua defesa intransigente dos consumidores, e ele entrou em contacto com eles. Mas como da associação lhe solicitaram uma amostra do produto para iniciarem as averiguações, a coisa ficou por ali. Mas esse acontecimento foi decisivo na minha admiração pelo trabalho da DECO, por isso dispus-me desde logo a combater os pontos negros, consciencioso como sou.

Vai daí, pelo final da tarde dirigi-me à via rápida que atravessa o meu bairro e pulei a cerca de arame farpado. Pus-me na berma da estrada e, com o auxílio de um espelho de bolso, comecei a procurar os ditos pontos negros na minha cara e espremi todos os que pude, principalmente na base das narinas.

Distraído como estava, mal me apercebi da aproximação de uma patrulha da Brigada de Trânsito, que se imobilizou a pouco mais de uma centena de metros de mim. Nessa altura lembrei-me de que não tinha comigo o colete reflector – multa certa, portanto. Os BT`s dirigiam-se a mim, toc toc toc, isto é, barulho das botas no asfalto, que é feito do clássico "Pare em nome da lei!", e lá tive de dar às de vila diogo e afastei-me dali em passo estugado, não descansando até me encontrar do outro lado da cerca (equivale a dizer que num só dia pulei por duas vezes a dita). Tudo aquilo me deixou a matutar: teria percebido tudo mal desde o início? Inventariar os pontos negros nas estradas portuguesas nada tinha que ver com o acne juvenil! Regressava afinal à estaca zero.

Até que avistei a casa da Dona Emília, a minha vizinha viúva. Depois de um incêndio que lhe destruíra a casa, há alguns anos, a velhota vivia transtornada (e estou a utilizar um eufemismo). Asseverava ter-se deparado, certa noite, com um “padre a marcar passo” e uma “nuvem de espíritos” no esqueleto do que fora o telhado da habitação. Aliás, ela afirmava manter conversas com os espíritos e jurava a dois pés que a sua filha mais nova nascera abençoada com um sinal em forma de cruz no “céu da boca” – “a minha Carla Lúcia é uma santinha!”, bradava a quem a quisesse ouvir. E o aspecto da velhota - redonda, anafada e com uma tez escura, a lembrar uma “mãe de santo” brasileira, levava algumas das pessoas lá do bairro a não descartar essa possibilidade (afinal de contas, sempre dá jeito dispor da ajuda de alguém com poderes espirituais).

Tentando evitar que me vissem, acerquei-me das traseiras da velha casa, na esperança de me deparar com um qualquer espírito que me aclarasse as ideias. Por ali cirandei durante quase duas horas, e nada. Nenhuma entidade sobrenatural se decidiu a contactar-me. Ainda fumei meia dúzia de cigarros, para ver se o fumo os atraía, mas em vão. Cabisbaixo, fui para casa, tomando já tudo o que houvera ouvido sobre espíritos como uma tremenda falácia, delírios despoletados muito provavelmente pelo álcool ingerido em doses pouco comedidas pela opulenta vizinha.

Chegado a casa, lanchei e dirigi-me ao meu quarto. Foi quando constatei que tinha deixado a janela totalmente aberta, abébia logo aproveitada por dezenas de moscas para se escaparem à canícula daquela tarde. Enfurecido, apoderei-me do primeiro objecto que tinha em cima da secretária, decidido que estava a matar todos aqueles seres abjectos. Mas quando vi que tinha acabado de pegar num mapa das estradas suspendi o movimento: “Mas é claro!”, gritei. “Agora tudo faz sentido!”. E, com um sorriso tresloucado nos lábios, apliquei toda a minha destreza de mão a espalmar as moscas com o mapa. Minutos depois, reinava de novo no quarto o silêncio livre de zumbidos. Depois foi só desdobrar o mapa e procurar aí os pontos esborratados acabados de assinalar e reportá-los à associação, com a satisfação interior de quem acaba de fazer algo em prol do seu país.
Façam como eu! Visitem a página da DECO e colaborem também nesta inciativa!

4 Comments:

Anonymous Anónimo usou da palavra

http://www.clearasil.pl/

06 junho, 2006 22:36  
Blogger Al Cardoso usou da palavra

O Lingua, sera que so foram esses os pontos que assinalas-te?
Ja a tempos que esperava uma proza deste genero, tens andado muito ocupado ou que?

Um abraco amigo.

07 junho, 2006 09:26  
Blogger Aladdin Sane usou da palavra

Eu que sou tão pacífico... de vez em quando bato em retirada.

Obrigado a quem me recomendou o clearasil, mas quem precisa disso quando se tem um espelho e duas mãos?

08 junho, 2006 01:38  
Blogger JL usou da palavra

Este texto está à altura do melhor a que o Língua nos habituou.
Fantástico :-)

Boa semana

11 junho, 2006 11:30  

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