E vão setenta!
Este espectáculo de Teatro de Rua tem estreia agendada para 30 de Junho.
Podem acompanhar neste blogue a concepção deste espectáculo. Para já, conheçam a ficha técnica e a sinopse de "Em Paz".
a tresvariar desde 2005
Quinze minutos depois, imaginava aquele que poderia afinal revelar-se o mal menor. Teria chegado atrasado, ter-me-ia deparado com os assistentes de sala que, com uma profissional compreensão, me informariam da existência de ordens para não deixarem ninguém entrar após o encerramento das portas da sala. Entre o transtornado e o conformado (afinal, havia já sido avisado de tal procedimento), regressaria muito provavelmente a casa. Quinze minutos depois, ponderava abandonar a sala.
Primeiro, o som sem imagem: textos poéticos de Herberto Hélder lidos alternadamente por Emmanuelle Huynh (a criadora do espectáculo) em francês, e por Nuno Bizarro (bailarino), em português. Os diseurs enganam-se e riem; depois recomeçam. A plateia cansa-se. No palco, duas colunas sobre duas caixas, ao centro. A plateia aprecia o desenho de luz do espectáculo, enquanto se contorce de impaciência. Huynh situa-se, com esta apresentação, na corrente do imprecacionismo, assim designada por confrontar o espectador com situações-limite, levando a que este solte imprecações, verbalizadas ou não. Subitamente, o quarto-de-hora-poético é quebrado, durante breves segundos, por “Heroes” de David Bowie. Regressa a leitura, depois a música.
Segundo momento: a imagem sem som. Os bailarinos já no palco. Em silêncio, os corpos despertam, tomam lentamente consciência um do outro. Atrás de mim, alguém pede desculpa e sai. A bailarina, Catherine Legrand, apercebe-se do ruído e olha os que saem, saindo ela também por momentos da personagem. Os corpos aproximam-se, enlaçam-se em movimentos langorosos, lentos, carnais, impregnados de desejo. Separam-se e ficam literalmente suspensos da existência do outro. O silêncio é interrompido por diversas vezes por “Heroes”, despertando-nos da contemplação das pulsões daqueles corpos.
“A Vida Enorme”: em pouco menos de uma hora, “o som sem imagem, a imagem sem música como num filme sem sincronismo.”
De regresso a casa, um gato amarelo e branco atravessa a estrada poucos metros à minha frente. Desacelero e desvio-me ligeiramente para não o interceptar. Fascinou-me a sua corrida temerária e felina perante os meus olhos. Assisti à continuação do que acabara de presenciar no palco, iluminado pelos faróis do carro.
Chegado a casa, leio na brochura de “A Vida Enorme”: “Neste filme, o espectador é levado a construir o enredo no seu ecrã pessoal”. Não deveria ser assim em todas as ocasiões?
(Nesse dia, perto de casa, passei de carro por um grupo de meia dúzia de pessoas. Havia pétalas no chão, e uma mulher de meia-idade atirou pétalas ao carro. Buzinei-lhe como sinal de agradecimento.)