24 de fevereiro de 2010

De Composição

Nasci do epitélio dos mortos. Formei-me da decomposição das matérias.
Sou apenas uma ínfima parte de um átomo, mordiscando o elo da natureza
mais débil. Na destruição dos ecossistemas, já não há um caminho possível.
Apenas o labirinto de Creta, Dédalo e Ícaro no horror da finitude. Homens
sós, na maledicência do mundo ávido de progresso. São as cabeças no ar
do poder. Resta-nos o universo dos sonhadores e dos inocentes para salvar
o que ainda é possível. No ocaso em que me encontro, abro os braços à terra
para me consumir na corola dos vivos. Desprendo-me agora, em partículas
assinaláveis de amor e humanismo. Para que nasça uma rosa de esperança.

19 de fevereiro de 2010

LP- Libertino Português

Enceta a tua história pessoal única e corre no universo rumorejante da utopia.
Rumorejar é agitar a inquietação na bolina do silêncio
Passamos anos e anos a navegar na imberbe esfera dos sonhos
e tudo, para nada. Nada, ou Beckett, na profusão da espera.

Sou o Situacionista do verbo. Uma plúmbea e atroz face de horror,
silvas & devaneios, uma editora a criar. A cultura é um caldo pop limão
sem açúcar mascavado nem a indigência da agricultura biológica.

Quero morder-te a naúsea! A carne putrefacta e animal no desvario
dos sentidos. Limalhas escorrendo na seiva da fome. Boca escancarada
ao desejo, corte singular e mordaz no universo das tílias. Um embalsamado
corpo no amplexo da fadiga. Discorrer as horas-mortas no manifesto do libertino.

10 de fevereiro de 2010

No Sargaço de um Beijo

Trocaste as voltas à fantasia. Caíste na cilada dos vivos!
E agora, socorres-te da memória dos náufragos.
A tua tez lívida, mascara a ausência de emoção. Partes
rumo a um cais diferente, ancoras o desejo no frémito
singular do corpo nauseabundo. Estás carcomida de
paixão e horror, deitas-te nua na enseada dos abutres.

Acordas desse caudaloso sonho e escondes-te à pressa
nos canaviais. Os pescadores terminam a sua faina e
regressam aos copos na tasca em frente. Entretanto,
tomas um banho retemperador e já vestida, começas
a escrever os teus sonhos na areia. Vais à tasca dos
pescadores e pedes um bagaço que te faça acordar.

Já no frémito da cidade, deambulas risonha, porque
este dia foi especial para ti. És uma pessoa diferente.
Sentes-te viva, segura de ti. Chegas enfim à casa da
utopia, a tua única morada dos desejos e conquistas.
Queres um amor de sonho e sonhas com o teu último
amor encontrado no sargaço delicado de um beijo.

6 de fevereiro de 2010

A Única Vocação deste País

A única vocação deste país é esquecer.
Cruzar a fronteira - linha imaginária do desejo - e não mais saber do burburinho
saloio daquela música de fundo. Cantores de fatiota retro e voz anasalada.

Sair, obliterarmos a comezinha vida dos jargões alcandorados na via pública
das virtudes inconsequentes. Demasiado difícil? Nem pensar em responder
ao afecto bacoco das naus catrinetas. Agora, sair e esquecer. Amparar as
dúvidas na filosofia e prosseguir em frente, rumo à esquerda do meu pensar.

Nas minhas mãos, a escrita perene e entusiasmada. Fragmentos de mar
e congestão inusitada de locuções. Nada mais me interessa, senão partir.
A única vocação deste país é esquecer.

Não é aviltar contra a insónia que a margem se comprime mais.
É discorrer sobre o universo da infâmia, da sarna acumulada no
leito do navio. Dentro do tonel, o lastro vínico das borras lamacentas,
o álcool à deriva na erosão dos corpos mutilados da contradança.

A vocação deste país é gerundizar.
Ir andando ao sabor da maré.
Se for salgado é uma saudade embriagada.
Se for doce, uma utopia anquilosante.
Se for amargo, um futuro deprimido.
Se for ácido, uma poesia de nervos e carne.

No aroma delicodoce de um verbo, há escárnio e maldizer em barda.
Por ora, fixo o meu olhar para a raia, cruzar o bordo dessa linha invisível.
É assaz preciso a inquietação do crítico, pois a modorra geral é o busílis da vida.

A única vocação deste país é esquecer.
Cortar as amarras do navio e permitir a livre circulação de pessoas e animais.
Uma fronteira inefável, sem nevoeiros insossos e um ror de gente a querer lembrar.

4 de fevereiro de 2010

Dunas de São Jacinto

E agora? Que chego aqui de rompante ao canal que me leva à Barra da Ria?
Enfrento esse farol da ilusão, guia espiritual nos dias de nevoeiro. Aprecio a
sua compostura óssea, circundando o seu delgado corpo. Defronte, o mar.
Um sal rumorejante na língua e um cais ancorado na dúvida.

Parto depressa para São Jacinto, com os seus areais de sonho e umas dunas
bem selvagens. Naquele recanto deito-me e apenas um pescador ao longe.
Temos medo do amor que fazemos, mas desaguamos a felicidade na salsugem.
Um sol brando cobre-nos os corpos no abraço infinito da saudade.

1 de fevereiro de 2010

Leitura dos Manuais

Nesta redoma doirada da vida, navego em círculos concêntricos, qual umbigo desabrigado
nas ventanias do presente. Muita rotina e publicidade ofuscam-me a memória dos dias.
Estou farto, mesmo farto dos habituais ciclos da vida. Apetece-me uma necrose larvar
no sossego dos afagos distantes. Existem deusas incompreendidas, mas ao mesmo tempo
amadas na bitola estreita da única via possível: da utopia e dos idílicos manjares filosóficos
ao fim da noite. Numa pedra fria, o meu aconchego, livros onde recolher a minha impressão
digital que me marca um passado cheio de futuros por descobrir. Farto das fantasias pueris
da sociedade, enredada na espectacularidade da vida. Palavra longânime e abstrusa, mas
fidelíssima. Sim, sei que gosto de empregar palavras difíceis e caras, para procurarem no
dicionário, para pesquisarem e sentirem-se mais inteligentes. Porque sou feito de uma
massa de moldar difícil, pensando na comunicação e na pedagogia, atento aos abraços do
mundo em circunvoluções intermináveis. Sinto-me infame perante a perícia da vida.

Como uma estória circular, sempre a vida e a morte. O horror dos corpos naufragados,
o ludibrio das palavras na fonética por inventar. Entre o campo semiótico e o filosófico
há muitas portagens por passar e avançar. Sem talões nem outras complicações, resfolego
entre a epistemologia e a ética, depois o estoicismo de Epicteto. Encaro a fenomenologia
como uma hermenêutica clara entre mim e os objectos que me rodeiam, como este mapa,
ancorado no cais das palavras iconoclastas. Na beatitude esbelta do pensamento, discorro
serenamente nos píncaros existenciais e sintácticos da vida, perambulo no eclectismo e nas
ortografias sem acordos possíveis com este futuro espúrio. Resta-me a pedra, já quente de
tanta leitura, tanto filosofar exegético à volta deste pequeno mundo da introspecção.