31 de dezembro de 2008

A Pedra Essencial

- Gosto de confiar na minha barba!
- Cofiar! - disse-me ela na certeza do meu engano.
- Não. Gosto mesmo de confiar na minha barba! Ela ajuda-me a reflectir, a manter-me calmo
mesmo nas horas mais complicadas, ela tem sido a minha confidente nestes últimos tempos.
-Estou impressionada contigo! - desculpando-se embaraçada da invectiva anterior. Como é
possível um simples crescer de pelos negros e rijos fazer essa mudança? Isso são tretas que
inventas para ti próprio. Tens sempre de arranjar um amuleto, uma bengala para seres feliz?
- Só que eu não sou feliz! Posso aparentar estar bem, ser activo, deambular por muito sítio,
mas não sou feliz! É como se eu fosse uma casa: tenho uma boa sala onde posso ler, estudar;
tenho um bom quarto, confortável, quente, onde poderei descansar; ter a minha cozinha onde me alimento e mitigo a fome, ter um bom telhado onde não entram as chuvas; mas falta-me o
primordial: o alicerce, aquilo que permite sustentar todas as divisões da minha casa feita
vida, o Amor. Falta-me o amor, trave-mestra da felicidade.
- Continua a cofiar a tua barba! Talvez um dia tenhas a casa pronta! -disse-me com um
sorriso provocador e voltou costas ao edifício em desmoronamento, farto agora de lágrimas.
- Confiar! Tenho de confiar na minha barba. -isto enquanto secava as lágrimas à manga suja
e pejada de borbotos. Posto isto, fez-se a caminho do mar e escolheu a primeira pedra para a
sua nova casa. Desta vez começaria pelos alicerces!

27 de dezembro de 2008

Carpe Rosa!

Prende a respiração na noite demorada do luar. As estrelas tremeluzentes são a ideal
companhia dos amantes solitários, gaivotas perenes de paixão e dor. Na ânsia de um
poente por acontecer, há sonatas que se tocam com os dedos frios em vôos nocturnos por
desbravar. Nas águas bravas do desejo, vislumbras a insidiosa morte dos sentidos nas
arenas do silêncio. Fios correm, erectos e férreos nas salinas raendo o mel da paisagem,
nuvens passageiras dos anseios em que agora mergulhas. Nesta efusiva estação dos
míseros embrulhos carcomidos pelas chuvas ácidas da esperança, desnudas-te no cerne
da multidão, pátria inflada de consumismo irracional. O que é geracional é bom e por isso
transmutas-te em género avaro e silvestre, amora prenhe de suco existencial. Na aurora
do decepado brilho dos olhares, continuam a arar os campos desérticos do amor, os pobres
e fugazes seres amedrontados com a existência do vácuo primordial, eficaz modorra dos
dias inquietos. Claro que tudo isto é a brincar, ironia sagaz no mergulho profundo dos teus
braços cansados. Sei que no mais fundo de ti te traí, mão inquieta e alarve, sedenta de um
retorno a ler devagar nos eternos melodramas da memória. Agora, resta esperar pelo
palco vazio, para deitar-me nas tábuas quentes da emoção, cama persistente da vida.
Como é tão riscada a efemeridade de uma escrita feita beijo enlouquecido, impotente
marcha nos dias rasurados de vitórias. Um só olhar basta para derreter a neve das
turbulentas dúvidas entre palavras feitas rumor e glória, criação mental de um universo
instável e singular, destino interno para a hibernação razoável da memória.

24 de dezembro de 2008

Um Fio no Cais das Palavras

Hoje estou no cais. Faz muito frio nesta margem ancorada do devir. Uma neblina constante
é a minha única companhia. Sinto que estou perto da loucura neste desesperado canto de
um cisne que teima em lutar. Explorar os sentidos e as emoções não é fácil, homens-bons
do destino da gentalha. Os carros andam depressa, refulgem os motores em busca daquele
presente esquecido. A culpa é da memória que nos faz esquecer o passado. Nesta era só conta
o aqui e agora, o toma lá esta lembrança obrigatória da época para que saibas que ainda não
me esqueci de ti! Esquecimento esse da razão e do sentimento, fruto da época que nos
cristaliza a saudade. Por agora, apenas sonhos na mesa dos pobres, nem que seja por um dia
pejado de ruído e luzes que me cegam. A sopa que prefiro é a deste silêncio que agora me
escuta, que permite que este intruso discorra sobre a diferença. Há que mudar de paradigma, porque o desencanto ainda existe, mas é abafado pelas ruas vazias de gente. Já me perdi nas águas divagantes de um eremita solitário, musa efémera e particular das serranias. Respirar o
berço de um caminho de reflexão, de uma maré de vagas acintosas. Agora, atirar uma pedra
ao desafio, em diante, rumo a um abrigo que me deixe extravazar as minhas lágrimas.
A caducidade dos meus sonhos, das minhas misérias acumulam-se todas nesses sucos, nesse
sal que se desprende em turbilhão, em agonia, que terei de suportar com todas as agruras
do mundo. Perder o sentido da caminhada, foi o que me aconteceu. Perdi-me em rotas
secundárias, na imensidão dos olivais, no deserto do teu amor. Tudo se me foge nos dias
diáfanos e senis. Quando chega a razão crua e mordaz, desisto do percurso, viro costas à
alegria e divago nas margens abandonadas de uma folha em branco, poema em acto de
dor, que é simplesmente amor prensado a frio no lagar da minha solitária inquietação.

17 de dezembro de 2008

Moradas da Fome

Interesso-me pelos teus socalcos apostos na margem do abandono.
Nas linhas retorcidas da férrea serenidade, apito no mais desbragado
fumo que orienta a bússula dos dias. Agarro-me aos mapas da inquietação
na última via possível da sobrevivência do corpo. Sou um antípoda do
desejo crepitante, uma chispa de sal nas nuvens. Lancinante, a sevícia
do dever é que prende a memória nos aflitos ares telúricos. Agora, a
sorumbática raiz do medo é um simples gesto de cumplicidade, entre
risos e pérolas, uma inquinada selva dos sentidos, pronta a triturar as
espécies em deambulação exegética. Sofre a infância na dor reumática
dos anos em surdina, do ocaso milagroso de uma mulher em deriva
intercontinental. O gesto desta anciã tem mais densidade que toda
a História do mundo, os seus rizomas perenes e fortes anunciam o
único segredo inconfessável. Ela está prenhe de lucidez (luz na aridez),
aplaca os plúmbeos céus no entardecer triste dos pássaros. Entretanto,
segura na vasilha de alumínio para dar de beber à voz emudecida do
silêncio, sorve o café com fervor denodado, acaricia o pano frio e sujo
e por fim, canta alegremente o último dia da sua vida, feliz estrondo
das galáxias, supernova da poesia celestial e funesta carne intacta
nos milénios da perseverança. Roo com firmeza esse manjar do teu
corpo pútrido e sagaz, até ao tutano da tua ossada em solene abandono.

16 de dezembro de 2008

Dois Novos Centros Culturais no País

Hoje falo-vos de dois novos Centros Culturais no país, que vêm reforçar a cada vez maior
necessidade de cultura em zonas fora dos grandes centros macrocéfalos. São duas prendas no
sapatinho desses habitantes e de todos nós, se tivermos oportunidade e ensejo de os visitar.
Como sempre, o que é preciso é que sejam acompanhados de uma programação cultural à
altura, com variedade, quantidade, sem nunca descurar a qualidade.
As cidades em festa são as Caldas da Rainha e Portimão. Nas Caldas temos um Centro Cultural e de Congressos e em Portimão o TEMPO - Teatro Municipal de Portimão. Dois belos
edifícios com boa programação já iniciada. Já estão incluídos no imenso rol deste blog, mas ficam
aqui de seguida para consulta imediata.
http://www.ccc.eu.com - Centro Cultural e de Congressos das Caldas da Rainha

11 de dezembro de 2008

100 anos de Manoel de Oliveira

Mais importante que falar, é ver a sua "obra". Oliveira é o decano dos realizadores, no mundo. E ainda está activo! A comemorar 100 anos com cinema: está em rodagem do seu próximo filme "Singularidades de uma Rapariga Loira". Eu gosto de Oliveira. Com Oliveira aprendi a gostar ainda mais do meu país, a apreciar a cultura singular que temos, os artistas, as paisagens, o teatro. E claro, a definição de um Cinema Português que não cede perante as imagens e ideias feitas de uma indústria do cinema. Para Oliveira o cinema é puro teatro, é palavra (e utopia). Devemos ceder à fácil tentação de catalogar os seus filmes como longos, maçudos, parados. Pelo contrário, há uma vitalidade e uma ironia assaz surpreendentes em Oliveira. Há obras maiores e outras menores, claro. Há obras que aprecio menos. Mas acima de tudo, fui ao cinema ver os seus filmes, possuo alguns dos seus filmes. Aí, posso finalmente expor-me perante as suas mensagens e a minha recepção crítica. E, na maior parte das vezes, sou surpreendido, sou alertado para uma outra visão das coisas que não tinha antes, com tudo isto, fico mais sensível para as coisas do mundo, em suma, para a efémera vida dos homens. De uma vida que é afinal e apenas: Teatro! Diz Manoel de Oliveira sempre irónico: "A vida não existe! O que existe de facto é o teatro. Porque a vida escapa-se-nos a todo o instante, o momento de agora é já perdido, e portanto o que nos resta da vida é o teatro". Simples e lúcido, como sempre! A ver, a rever, a descobrir a "obra" de Oliveira desde já, sempre!
Filmografia essencial de Oliveira, na minha modesta visão:
1931 - Douro, Faina Fluvial
1942 - Aniki-Bobó
1956 - O Pintor e a Cidade
1963 - Acto da Primavera
1964 - A Caça
1972 - O Passado e o Presente
1974 - Benilde ou a Virgem Mãe
1979 - Amor de Perdição
1981 - Francisca
1985 - Le Soulier de Satin
1992 - O Dia do Desespero
1993 - Vale Abraão
1994 - A Caixa
1998- Inquietude
2000 - Palavra e Utopia
2001 - Porto da Minha Infância
2002 - O Princípio da Incerteza
Está feita a minha escolha. "Vou para casa" ver um filme de Oliveira!