Como vos dizia ainda há pouco, depois do memorável campo de férias num recanto da já de si recôndita Tanzânia, regressei. Teve de ser, quanto mais não fosse porque tinha marcada uma consulta com o psi a que não poderia faltar.
Assim que entrei no seu consultório, o Doutor Martins – vou chamar-lhe assim porque é mais seguro, já todos vimos filmes em que os psis são atacados por pacientes, ou isso ou assaltam-lhes os consultórios em busca de quaisquer informações, este mundo está cada vez pior; e também porque suponho que ele prefira manter o direito à sua privacidade; como se tais motivos não bastassem, chamo-o assim porque é esse o seu nome – o Doutor Martins, dizia, abandonou a “Elle” que folheava; cumprimentámo-nos, "shodotor, como está?", e deu-se início à sessão.
Depois de alguma conversa de circunstância, perguntou-me o que tinha feito nas férias. Relatei-lhe os principais acontecimentos, e isso deixou-o pouco menos que assombrado. Tentei acalmá-lo, dizendo que não estava perante um potencial assassino ou perturbador da ordem pública, uma coisa é frequentar campos de treino da Al-Kaeda – isso mesmo, com “k”! – outra é andar por aí a matar pessoas.
- Não gosto de matar pessoas; - afiancei-lhe então. Mas logo rectifiquei: - Não é que já o tenha alguma vez feito, matar pessoas, entende? Só que me parece que não deveria fazê-lo, por isso digo que não se deve fazer disso ocupação.
Perante o seu olhar inquisidor, tentei aquietá-lo, contando-lhe isto:
- O mais próximo que estive disso foi quando, em miúdo, arrancava uma asa às moscas que apanhava. Depois fechava várias moscas numa caixa de fósforos vazia e deixava que a natureza seguisse o seu curso. Imaginava qual delas sobreviveria por mais tempo.
Ele soergueu-se um pouco da poltrona:
- Ah sim? Isso é assaz interessante!
- Ora, coisas de miúdo! Mas por falar em assaz, por vezes também as punha em cima do fogão e ficava a vê-las espernear, debatendo-se contra o calor que acabava por fulminá-las.
O psi teve uma reacção inesperada a estes relatos da minha infância.
- Sabe, tive um episódio parecido com esse. Quando era miúdo, os meus pais levavam-me muitas vezes à quinta dos meus avós, em Trás-os-montes, e lembro-me de uma vez em que, – e aqui começou a esboçar um sorriso – na Primavera, fui até ao batatal ver o caseiro a aplicar o pesticida nas batatas, curá-las, disse-me ele. Nunca tinha visto aquilo! Falo dos escaravelhos, uns bichinhos castanhos. Havia milhares deles por toda a folhagem. Então, fui buscar uma caixa de biscoitos vazia que tinha achado na arrecadação, e apanhei tantos insectos daqueles quanto pude; enfiei-os na caixa, fechei-a e enterrei-a ali perto. E não me lembrei mais disso durante o tempo em que estive na quinta.
Aquela confissão, de tão inesperada, deixou-me aturdido, a pensar no que faria ali, pelo que tratei de me levantar apressadamente e de me despedir tant bien que mal do Dr. Antunes, ou Martins, ou Soares, a pretexto de um compromisso inadiável de que me teria esquecido. Esta estranha sessão terminou, portanto, bastante mais cedo que o previsto, e senti-me aliviado ao chegar à rua.
Nos dias seguintes, como se deambulasse pela casa meio macambúzio, uma vizinha que vendia melões à beira da estrada perguntou-me se estaria disposto a ajudá-la na venda. E depois de acertarmos o pagamento pelo serviço, lá fui passar as tardes junto à carrinha de caixa aberta, a vender melões e a ouvir a Antena 1 (cortesia da Dona Lucinda, assim se chamava a minha patroa).
Como estávamos ainda em Agosto, o tema de conversa entre nós e os clientes era quase sempre o mesmo. Que todos os anos era a mesma vergonha, prometia-se que no ano seguinte não seria assim mas depois o caos repetia-se, que eles deviam era ser todos expulsos do país (e isto era o mais leve das penas decretadas ali mesmo, à beira da estrada). Falo, como terão já calculado, das transferências falhadas de craques para os nossos “grandes” do futebol, que todos os Verões assumem contornos de drama nacional. E que a culpa, dizia-se, era dos jornalistas, e que muitos deles eram já reincidentes, que anunciavam a contratação de jogadores de topo que afinal não se confirmavam, e o povo, sedento de reforços, deitava as mãos à cabeça quando os via rumar a outras paragens, ele foi o Tomasson, o Saviola, este ano o Tristán, e um com o nome parecido com Piccoli, houve até um presidente que cometeu a heresia de despedir o treinador porque este queria o Hesselink, ou Helsínquia ou coisa que o valha. Ou seja, o alvoroço habitual dos verões portugueses.
E lá ia conversando com os clientes sobre tudo isso, até que comecei a fartar-me do assunto, e comecei a ouvi-los falar respondendo apenas com acenos de cabeça. E depois já nem lhes respondia; eles falavam, eu aproveitava para comer uma fatia de melão, atirando as cascas para o meio da estrada, vendo-as ser despedaçadas pelas rodas dos veículos que passavam (isso distraía-me das conversas). Só que a paciência tem limites, a minha pelo menos, por isso comecei a responder aos clientes com alguns impropérios. E um dia, reconheço-o agora, excedi-me. Uma família inteira lamentava-se do “sistema do futebol português” há mais de dez minutos quando me levantei do banco onde me tinha sentado, bradando:
- Esses gajos precisavam era que lhes fizessem como nós fazíamos quando encontrávamos um sapo nas cercanias da casa. Púnhamo-lo numa extremidade de uma tábua e saltávamos sobre a outra extremidade; catapultávamo-lo e ficávamos a vê-lo voar bem acima das nossas cabeças, e por vezes conseguíamos ouvir o som abafado que fazia ao embater no chão! Ah, isso é que era, hã!
Não sei se por causa do meu tom de voz, se terá sido do meu furioso gesticular, ou ainda devido aos salpicos abundantes de saliva, o certo é que a família inteira (homem, mulher, duas crianças e um poodle chamado Miki, ou Mickey ou lá o que era, debandou rapidamente, deixando o saco de melões que tinha já pesado e se aprestava a pagar. Isto foi demais para a minha patroa, que se abeirou de mim furiosa:
- Olha lá, ó meu paspalho, que parvoíce foi essa?
- ... (é que nem tive tempo de responder!)
- Então faz-se isso aos clientes? Hã? Assim dás-me cabo do negócio! Quem diabo pensas que és, seu fedelho?
- Eu... Eu sou Aquele que É.
- Olha, não quero saber de mais nada. Desaparece-me daqui, já!
- O meu Ego não é deste mundo. Se o meu Ego fosse deste mundo... – nesta altura parei, porque não me lembrava do resto da frase. De qualquer modo, a Dona Lucinda já não me ouvia; tinha-me voltado as costas e saído dali apressadamente.
Assim acabou o meu trabalho de Verão, e pude finalmente voltar ao descanso que já merecia.