Espectáculos de 5ª a Domingo,21:30, Teatro Mun. do Barreiro, tel: 212060860, até 19 de Abril.
Um bom trabalho assinado por Rui Quintas e restante equipa. Um texto muito vivo, onde o conflito, que gera o par acção/reacção é muito explorado pelo autor, onde a vivência espanhola é bastante marcada, com todo aquele frenesim das personagens, os diálogos rápidos, com "muchas ganas", os longos solilóquios doutras com "um speed invulgar" (como diria o saudoso crítico Manuel João Gomes), num retrato demasiadamente actual. Indaguei-me quando teria sido escrito este texto. Foi em 1993. Isto porque soube-o, em 2007 houve uma seca terrível na Catalunha, especialmente em Barcelona. Todos estavam exasperados, stressados, aguardando que a chuva chegasse. Meses a fio de seca, calor, mortes associadas a este clima inusitado por aquelas bandas. Lembro-me de uma reportagem onde os frenéticos Catalães pediam a tudo e a todos os santos para que chovesse, isto dito pelo Sr. Jordi, de cigarro na boca. Coincidências? Claro que as há. No teatro, os acasos são das coisas mais importantes a reter e a saber aproveitar, especialmente os acasos da vida quotidiana, os acasos nos ensaios, etc. Para isso, leia-se a tese sobre, precisamente "O Acaso no teatro", bastante interessante. Portanto, depois da escrita premonitória de Belbel, temos a realidade que ultrapassa a ficção. Voltando às quatro paredes da sala de teatro, é de realçar uma cenografia bastante limpa, feita de material simples, como as paletes sobrepostas que nos indicam uma imensa rede de contactos, de ligações, de andares. Tudo ali se entrecruza, todos ali se (des)encontram, toda aquela estrutura rígida é também bastante frágil (aliás, nas paletes costuma-se indicar a palavra "Frágil", a sugerir que se tome cuidado com o que está em cima delas). O design de luz, especialmente colocado sob as paletes, no cerne destas, é de realçar, pelos planos que cria, pelas formas e volumes entrecortados. Menos bem aquela parede onde está um papel pintado, a simbolizar os andares e prédios.É uma barreira demasiado presente na vista do espectador, que retira alguma visibilidade, especialmente a quem estiver nas 2 primeiras filas. Os figurinos são bastante fiéis ao que se pretende, bem pensados, e que se colam verdadeiramnte a cada uma das personagens. Está de parabéns a Ana Pimpista. Bom também o design e trabalho de sonoplastia pelo Nuno Fernandes, num registo muito próprio a que já nos habituou.
É de realçar o trabalho de tradução e dramaturgia conseguido, numa reescrita do texto que apresentava algumas dúvidas, erros e lacunas. Boa direcção de actores, o que se reflecte depois no trabalho de cada personagem elaborada. Destaco o trabalho de todas as secretárias, sem excepção. Helena Cruz brilhante na sua personagem muito hispânica, faladora, ciumenta, cínica e por fim resignada à sua sorte. Susana Marques também no mesmo diapasão de mulher sofrida, desamada, por fim amante desbragada. Esta Susana saíu de um filme de Almodôvar? Parece, o que é óptimo. Sara Santinho na sua personagem mais sentimental, mais calma, que apoia as outras, num registo muito seguro, cheio de glamour. Bom trabalho, já não a via há algum tempo, boa evolução no trabalho. Ana Samora, a mulher diferente, a sonhadora, a utópica, num trabalho de qualidade, muito contida, seguríssima da sua personagem, com uma fisicalidade e um registo nos olhares, pausas, silêncios, quase perfeitos. Uma actriz num milhão?
Quanto aos homens, começo já por Patrocínia Cristóvão, sim, porque é de uma mulher-sargento que aqui se trata, bom registo, num dos melhores trabalhos que a vi fazer até hoje. Está a evoluir. Só falta ainda algum trabalho de voz, especialmente nas réplicas mais poderosas, onde essa força, esse determinismo da personagem se faz notar. Uma personagem muito importante no contexto da peça, pois ela representa toda uma geração de novo-riquismo, novas ambições, num individualismo crescente da sociedade. A personagem que não olha a meios para atingir os seus fins. Nuno paulino, que bom é revê-lo nos palcos, muito mais maduro, seguro de si e da personagem. É bom ver e sentir regressos assim. Agora, não desapareças mais uma mão cheia de anos, ok? A personagem é a oposta da anterior, um estagiário cheio de boas intenções, boas maneiras, educado, responsável, fiel. Um paradigma das novas gerações, de um novo homem? Esperemos que sim. Esta personagem, que passa por toda a tempestade dos afectos, é a que merece o perdão dos deuses no final (ou do autor, se quisermos) com o encontro e a redenção para uma nova vida, com a Secretária de Cabelo Castanho, a infeliz e infértil mulher. Infértil, mas em sonhos, utopias que não chegam a realizar-se. Mas fértil, porque não se deixa contaminar pelas propostas da Directora, das colegas. Segue sempre o seu rumo, o da ética, da moral. E no teatro, desde a Grécia antiga, é disso que falamos: da Ética na vida, da ética como vida. Acaso ou não, "Depois da Tempestade" vem..."A Tempestade", de Shakespeare pelo Teatro da Cornucópia. Afirma Luís Miguel Cintra: "Este é um teatro da Ética, da ética como seres que somos, pessoas do teatro e da vida". Julgo que é por este caminho que a arte deve seguir. A ética da verdade, da transparência, da vida em colectivo, em que temos de estar mais atentos ao olhar do outro, ao sentimento do outro. Nuno Magalhães, vejo-o pela primeira vez. Tem à-vontade em cena, consegue segurar a personagem, num registo gingão, de Casanova, para não dizer Don Juan. No entanto, há movimentos excessivos que devem ser corrigidos e limpos no futuro e é necessário um trabalho mais apurado com a dicção e a enunciação do texto. Com trabalho e mais experiência isso será concerteza aprimorado. Por isso, continua com esse desejo de teatro.
Para terminar, que bom é ver Rui Quintas de novo em cena, um profissional da arte, na sua terra natal, num grupo que tem a ética, a vontade, o desejo de dar o salto. Talvez outros profissionais sigam esse gesto. Talvez haja um teatro ainda mais profissional! Porque profissional já ele é. Mas sem dinheiros, com muito jogo de cintura. Um salto utópico, sonhador? Mas talvez fértil, no caminho desse profissionalismo, da visibilidade, da centralidade. Quando todos compreenderem a importância do teatro, deste grupo de teatro para o desenvolvimento de várias áreas no Barreiro (comércio, cultura, visibilidade do concelho, prestígio, vinda de cidadãos de Lisboa), quando reflectirem, talvez possam tomar a decisão certa. Mas por favor, nunca "Depois da Tempestade" se abater sobre nós!