Olha, quero escrever-te esta carta. Provavelmente até não gostarás de mim, por ser tão rude e muitas vezes
me deixar enredar nas obscenidades, na revolta contra o mundo dos poderosos. Acredito que tenhas razão.
Não passo de um ser simples e tolo, nascido no meio da pobreza e das injustiças. Depois, o fermento dos
dias e anos a ver sempre os mesmos a sofrer e a não ter nada, fez o resto.
Provavelmente não gostarás desta carta nesta época de paz e amor, em que todos somos bons samaritanos
e praticamos o bem. Eu não vou nunca praticar o bem. Porque não posso, porque não me deixam.
Sinto-me preso aos dias do presente, com todos os malefícios da humanidade. Uma noite, um dia, uma
época concreta não mudam nada. Nem Jesus, nem as religiões para iludir as pessoas e manter sempre
o status quo dos poderosos perante os outros, que não te iludas, somos nós. Sou eu e és tu. Apesar da
tua desconfiança para comigo e para com a minha vida. Mas lembra-te de respeitar sempre a visão do
outro, porque cada ser tem o seu canto pessoal de memórias e vivências individuais. É nisso que acredito,
em ti, ser individual e único. Desde que tenhas em ti a consciência do teu dever perante os outros. Desde
que saibas que a inteligência deve ser usada para o proveito de todos e não apenas do teu. Que a cultura
é algo que deves valorizar e promover. Que o amor é uma arma tão poderosa quanto a tua voz de luta.
Que a energia com que te empenhas perante o mundo e a tua vida são mais importantes que todos os
arraiais, todos os natais, todos os deuses, todas as romarias e procissões. Que não devemos adorar ídolos
com pés de barro, pois são inanimados e tu és um ser pensante. Usa o cérebro para a reflexão, a crítica
e usa a tua sensibilidade para amares as pessoas, os animais e a natureza envolvente.
Esta é a minha carta, é o meu coração a falar, numa cabeça com milhões de imagens, lugares, pessoas e
memórias infinitas. Que quando a vida não corre bem, existem os amigos, os amantes, os pais, os avós,
um desconhecido, para te ajudar. Que a vida não deve ser feita de medos, de temores com o futuro, com
o presente, com o passado. As dúvidas no caminho, só com a experimentação, só indo ao encontro delas,
poderás encontrar respostas, ou alternativas. Não há fórmulas universais para as nossas vidas. Há apenas
o desejo de trilhar caminhos. Umas vezes repetindo os velhos caminhos gastos e sem erva pelo caminho,
outras vezes molhando os pés na erva alta dos caminhos desconhecidos. A surpresa, a curiosidade é sempre
boa companheira. Ser observador, ser curioso, fazem de ti um ser mais lúcido, mais louco, mais estranho
para os outros. Não temas a diferença, o comentário jocoso, a indiferença, a extravagância dos teus actos.
Porque a vida que vamos viver é só uma, mesmo que não acredites. Aproveita o tempo que os teus pais te
deram para nasceres e construíres o teu percurso. Não foi deus que te pôs aqui, não desculpes sempre a
tua vida com a vida dos outros para te sentires melhor. Recusar deuses é assumir com maturidade todos
os nossos actos. Assumir que é o ser humano que comete atrocidades, que é a natureza que causa tufões,
tremores de terra, que os animais são cruéis, mas leais. Assume-te como ser que erra, mas sem pecado,
sem baixares a cabeça de vergonha perante o mundo. Levanta a cabeça, deambula por aí e faz novos
amigos. Podem não gostar de ti, podem ignorar-te, mas se fores sempre transparente e verdadeiro, estás
livre de remorsos e arrependimentos do passado. Nunca deixes nada por fazer ou dizer. Se amas, se sonhas,
se sofres, se sorris, se queres subir ao alto do monte, sobe, se te queres despir, despe. Se queres ser rude,
tolo, mau, sê. Como deves ser generoso, amigo, sensível, agradável para os outros. Mesmo para ti, que não
gostas de mim, que me ignoras, que me desprezas. Não te censuro por tal atitude. Porque sou eu que provoco
isso. Sou eu que vou à luta, sou eu que procuro a reacção da minha antecedente acção. Se ficasse parado,
se me mantivesse no mesmo limbo inerme, parado, não se agitaria o mundo, não haveria energia para fazer
a combustão dos sentidos. Esqueci-me de te dizer que isso faz parte do meu dia-a-dia de trabalho. O mundo
das emoções, dos sentidos, dos abraços, dos sorrisos, dos choros, dos gritos, dos pulos, do mundo das
crianças. Sê criança. E brinca, brinca. Cria mundos imaginários e amigos igualmente inexistentes. Cria estórias,
escreve e pensa. Desenha tudo o que possas imaginar. Pega numa faca e faz dela um avião, um termómetro, um microfone. Mas não te magoes com ela. Usa todas as coisas do mundo com cuidado e atenção, tendo especial cuidado com os seres humanos e os animais, depois, com a terra, a água, o ar, o fogo. Joga com os cinco sentidos, os quatro elementos, os três amigos verdadeiros, os dois olhos, o teu coração. Para que não sejas um zero nesta vida. Para que deixes marcas nos outros e não apenas na areia, que o mar acaba por apagar. Há mais marés que marinheiros, mas são eles que pescam para nós o alimento para vivermos. Não tens que comer animais, podes ser vegetariano, mas desde que faças a escolha por ti, não determinada por outros, serás mais feliz. Pensarás talvez nesta altura, que tanta escrita faz-te parecer o "Sermão de Santo António aos Peixes". Poderia ser, mas não tenho a agudeza intelectual de António Vieira, nem quero comparar-me a ninguém. Por isso, não temas tal parecença. São fruta da época, são páginas desse e de outros livros, mas também das minhas vivências, dos meus caminhos.
O meu desejo é que comeces a construir o teu, cada vez mais, mesmo que continues sem gostar de mim.
Não digo isto com tom paternalista. Nada disto serve de filosofia barata e vã para arrumar a um canto da mesa. Prefiro antes que me deites ao lixo que me deixes esquecido no cimo da mesa. Ou como por vezes dizer a verdade, ser duro ou directo pode ser menos doloroso que ignorar, que fugir ao confronto, ao frente-a-frente de ideias. Por agora vou-me despedir. Aonde quer que estejas, um abraço, um beijo, um carinho. Mesmo que não gostes de mim.