O mundo hard é jovem e toca em primeira linha os desenraizados culturais, as minorias raciais, imigrados e filhos de famílias imigradas. A ordem do consumo pulveriza muito mais radicalmente as estruturas e personalidade tradicionais do que o pôde fazer a ordem racista colonial: doravante o que caracteriza o retrato do “colonizado” é menos a inferiorização do que uma desorganização sistemática da sua identidade, uma desorientação violenta do ego suscitada pela estimulação de modelos individualistas eufóricos que convidam a viver intensamente. Por toda a parte, o processo de personalização desmantela a personalidade; no jardim da fachada, temos a dispersão narcísica e pacífica; nas traseiras, a explosão energúmena e violenta. A sociedade hedonista produz sem dar por isso um composto explosivo quando se imbrica, como é aqui o caso, num universo de honra e de vingança à deriva. A violência dos jovens excluídos em razão da cor ou cultura é um patchwork, resulta do choque entre o desenquadramento personalizado e o enquadramento tradicional, entre um sistema à base de desejos individualistas, de profusão, de tolerância e uma realidade quotidiana de ghettos, de desemprego, de desocupação, de indiferença hostil ou racista. A lógica cool prossegue por outros meios o trabalho plurissecular da exclusão e da relegação; não já através da exploração ou da alienação decorrente da imposição autoritária das normas ocidentais, mas através da criminalização.
A este título, a violência hard, desesperada, sem projecto, sem consistência, incarna a imagem de um tempo sem futuro que valoriza o “tudo”, e “já”; longe de estar em antinomia relativamente à ordem cool e narcísica, é a sua expressão exasperada: a mesma indiferença, a mesma dessubstanciação, a mesma destabilização, o que se ganhou em individualismo perdeu-se em saber-fazer, em ambição, mas também em sangue-frio, em controlo de si próprio. Hoje, o crime hard exibe-se em pleno dia, no coração da cidade, indiferente às horas e aos lugares, como se o crime se esforçasse por participar na pornografia do nosso tempo, a da visibilidade total. Na esteira da desestabilização geral, a violência deslastra-se do seu princípio de realidade, os critérios do perigo e da prudência esbatem-se, inicia-se assim uma banalização do crime reforçada por uma subida descontrolada aos extremos no emprego dos meios violentos.
Gilles Lipovetsky, in “A Era do Vazio” - Ensaio sobre o individualismo contemporâneo
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