4 de março de 2011

Ai que riso!

Ai que riso!

Na inocência rica da criança anónima, na esperança de um divertimento.
Que partidas, largadas e fugidas nas corridas do mundo de sonhos nos meus olhos.
E as nódoas e as feridas no chão da fantasia? Que prazer correr e tropeçar na terra.
No alcatrão e no cimento, as cicatrizes no corpo. A bicicleta a rasgar o horizonte e os
cruzamentos, sem travões nem campainha. E as mães a chamarem-nos da varanda.
Anda já para casa! O jantar está pronto. E nós, só mais dois minutos, para a última
corrida à volta do quarteirão. E de dois, se fizeram dez, quinze minutos. E o ralhete
no fim. Para os mais afortunados, uma palmada no rabo. E a roupa sempre suja.

Ai que riso!

E as escondidas, a carica sob o alvo passeio, o peão no meio da rua, a apanhada, o
trinta e cinco, os polícias e ladrões? E as raparigas? Com os seus jogos e nós sempre
a gozar com elas. As suas bonecas. Mas quando elas nos convidavam para brincar
com elas é que era. Os pais e as mães, o quarto escuro, o bate-pé, a verdade ou
consequência. Ai que inocentes que éramos. E que bom que era. E depois, voltarmos
às brincadeiras de sempre, à aventura desaustinada, aos pontapés e a atirar
as bolas para o quintal da vizinha, que se irritava solenemente. Até não nos querer
dar a bola e eu fazer a revolução, saltando o muro e resgatar a velha bola rota e suja.
E rir com as quedas, os tropeções na vida dos jovens, dos velhos. E tudo na mais
clara certeza dos dias prenhes de vida e emoção. Chegar a casa cansado e dormir
como um anjo no império da amizade e da descoberta. E a escola, aprender a ser
um homem, a sociabilizar e a sonhar em querer ser algo quando for grande.

Ai que riso!

Mas ainda hoje, sou a criança dos sonhos incomensuráveis, à espera de ser grande.
E rio-me nas barbas da seriedade da vida cinzenta e imponente das conquistas do
presente. E choro na praia salgada da minha memória perene e curiosa, a vogar
pelo tempo. Escorrendo lentamente na ampulheta da nossa finitude. Filigrana pura
na intempérie das utopias. E sou uma criança-pássaro, de olhos atentos ao mundo
e a cantarolar por aí, num voo destemido até às paisagens da nossa alegria.

Ai que riso!

Nas palavras que se encostam umas às outras, a imperfeita maresia do silêncio.
Entre as ondas, esse pequeno limbo de saudade, amor à vida e aos seres que
habitam os mesmos ninhos que eu. No riso mais pungente e duradouro que há.

1 Comments:

Blogger a saber usou da palavra

também sinto saudade no presente passado.

04 março, 2011 22:08  

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