22 de maio de 2009

Algum dia Perceberei o que Escrevo?

A estante. A agenda com todos os últimos registos de vida. Parto daqui para fora.
Acabo de queimar a câmara dos desejos naquela casa perversa. Agora, só escombros
e dor. A morte de alguém, um dia colorido na minha hirsuta barba e um cabelo agitado
ao vento, destrambelhado. Os pés nus e a cara rija. Frio é o que não falta na serra da
Peneda. Castro Laboreiro, Lamas de Mouro. Aqui estou bem, posso dormir descansado
de todos os crimes cometidos. Um bornal ajustado à razão do meu corpo, a sudação de
uma pele e um olhar de garrano atento entre as urzes e os vidoeiros. Alta roda da noite.

Desaparecendo na surdina ordinária do deserto, consomes-te no frágil nevoeiro da
fidelidade. Prefiro a suprema ironia de te ver pelas costas. Há sempre uma carta tardia,
um horóscopo sincopado na tua infantilidade. Acreditar nas datas perfeitas e que mais?
Só tens solidão e mágoa, pútrida cara enfadonha e ensimesmada. Egoísmo e narcisismo.
Foi isto que me disseram sobre as novas gerações, fechadas nos seus sons e nos aparelhos
de tapar os ouvidos para o mundo. Sempre a mesma ausência de silêncio que já diagnostico
há décadas, fisiologista dos sentidos que sou. Vem, com a esperança gasta das horas na
plúmbea arte de manobrar as mãos. As mãos e os dias, esfera inacabada do sucesso,
planta de altar-mor enegrecida, Mértola é já ali. Os Mauros da Mauritânia foram agora
descobertos. E de sol a sol se planta o trigo no Alentejo sarraceno, volta a Portugal da
eternidade, na perenidade de um sonho. Rufam os tambores. Baixo motor do dia.

Queria um complemento poético, receitado três vezes ao dia. Verbos incondicionais,
mente inquieta, horários por cumprir em demanda da saudade. Já chega de relógios
e pontes, sempre o desejo em particípio passado, letras e mais números, álgebras
lineares num quarto vazio. Fecha agora a porta, com um sorriso nos lábios e some-te
da vista dos mortais! Na metástase do pensamento, há adolescentes a mais nas fotos
de consumo imediato. Mastiga e deita fora a harmonia do mundo. Tanta zurrapa nas
frontes, pistola a atirar ao ar mais medo que consolação. Um torpor que te mata e
deixa-te na prisão insalubre. Escolheste a bifurcação errada e não sou eu que te vou
ensinar o caminho de volta, Ícaro. Nos teus labirínticos destroços, procuras em vão
Dédalo e choras copiosamente. Quem te mandou ser tão perfeccionista? Quem te disse
que só de realidade é feita a argamassa dos humanos? Ah, para que fazes tantas perguntas?
Procura antes o fio de Ariadne, tua única e derradeira saída. Guarda a criança dentro de ti,
perde-te nas planícies imorredoiras, sacode os pés contra a terra dura e seca. Cresce
e aparece! Vai já passar, o mito acalma-se na fogueira das vaidades. Preâmbulos e
didascálias. Apetecia-me agora escorrer os livros com água-benta da poética militante.
Quero cravar uma faca na lombada do desejo assassino, livros por encomendar. Sonho
agora com o desejo de escrever um pensamento, um poema apenas. Não consigo!
Quem me dera perceber-me! Algum dia perceberei o que digo, o que soletro, o que marco?

Fachadas, náufragos nas pedras frias. Os cornos de lana caprina são saltos no escuro
de um pensamento tergiversado na névoa de um sonho. Palavra gasta e usada, palavra
prostituída, calcada, rasurada, comida. Deus e o homem são inimigos fidagais. Um som
inquietante chama-me lá de fora. Tenho medo de sair, tenho medo das sombras nos
olhos cinzentos da morte. Uma nova promessa de acordo alucinado. Um novo prémio,
das utilizações mais agudas e rápidas na história do saber digital. Falo de dedos, carpo
e metacarpo. Torso e banalidades de última hora. Chá e torradas para o caminho.
Violações e pestes no caminho de Pinter. Um dia farás anos e oferecer-te-ei um livro.
Agora vou-me embora, apetece-me voltar ao cadafalso, com um sorriso nos dentes
e uma cefaleia incomensurável. Masturbo-me agora em silêncio, deixai vir a mim
os remorsos de uma moral em queda livre, olhos que me reprimem e dão-me mais
vontade de acabar com tudo, com a inveja, a putrefacção das cidades, os esgotos e
as vozes de protesto. Ah, quero regressar, quero acordar, chamas, nuvens, a loucura.
Deixai-me cair na cama dos horrores! Esta realidade é demasiado perversa e mortal!
Chega. Chega! Quando queimarei tudo isto? Quantos fogos-fátuos ainda terei de cometer?

3 Comments:

Blogger a saber usou da palavra

eu percebo. mas não sei em demasia elogiar.{}

25 maio, 2009 21:48  
Blogger a saber usou da palavra

novas imagens nas nossas vidas? eu quero e tu sabes. {}

26 maio, 2009 20:23  
Blogger odeusdamaquina usou da palavra

Há coisas que não entendo. Sou demasiado estúpido para descortinar.
Não sei a sabedoria do teu querer.
Sei que só escrevo quando me é permitido, quando a imaginação floresce. Não escrevo por escrever, ou porque os outros querem, ou porque eu quero. Nem mesmo eu tenho esse poder. O poder está na vida da imagética, nas imagens fortes que consigo vislumbrar ou noutras recorrências da memória. Elas são a inspiração que esclarece o meu pensamento.

26 maio, 2009 21:53  

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