12 de dezembro de 2007

Álbum de família

Eu era Hamlet. Encontrava-me à beira-mar e falava com a rebentação - blabla. Por detrás de mim as ruínas da Europa. Os sinos anunciavam o funeral do Estado, assassino e viúva um par, em passo de ganso atrás da urna do eminente cadáver, os conselheiros lamentando-se num luto mal remunerado QUEM É O CADÁVER NO CARRO FUNERÁRIO / POR QUEM SE OUVEM TANTOS GRITOS E QUEIXAS / O CADÁVER É O DE UM HOMEM / GRANDE DADOR DE ESMOLAS entre as fileiras da população, obra da sua arte de estadista ERA UM HOMEM QUE SÓ TIRAVA TUDO DE TODOS. Fiz parar o cortejo fúnebre, enfiei a espada no caixão, partindo-se a lâmina. Com o que dela restou consegui abri-lo e dividi o procriador CARNE VAI BEM COM CARNE pelas figuras de miséria que por ali se encontravam. O luto transformou-se em júbilo, o júbilo em voracidade, sobre o caixão vazio o assassino atirou-se à viúva - QUERES QUE TE AJUDE A TREPAR, TIO? ABRE AS PERNAS, MAMÃ. Deitei-me no chão e escutei o mundo a girar ao passo cadenciado da putrefacção.

Excerto de "A Máquina-Hamlet", de Heiner Müller (trad. Anabela Mendes)

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