Edward Hopper, morning sun
Um balcão de bar. Um homem, 30-40 anos ou mais ou menos por aí, toma uma bebida (demora-se, brinca com o copo, etc). Uma mulher maquilhada para encontrar homens. idade indefinida, o rosto maquilhado é máscara que lhe esconde a idade.
O empregado de bar limpa copos, serve bebidas, etc.
Homem – Tenho uma maleita. No rim. (fala pausadamente, o olhar quase sempre fixo no copo pousado no balcão) – Não quero ir ao médico, ele mandar-me-á verter as águas para um frasco e assim descobrirá o meu segredo. (Volta-se na direcção da mulher, mas não chega a olhá-la nos olhos). – É que eu descobri que a solução para o preço do “gazóile” está dentro de nós – a nossa urina é o mais poderoso combustível que jamais existiu.
A mulher revira os olhos.
Mulher - E como descobriste isso, ó Einstein de trazer por casa?
Homem – Por puro acaso. Por brincadeira, pensei: e se mijasse para o depósito de combustível do carro e aquilo funcionasse? (Pausa, revira o copo, bebe um golo) - É a revolução, o choque energético! (Ergue os braços, como se estivesse a colocar essa frase no ar.). – Caso não te tenhas dado conta, babe, há… 73% de probabilidades de estares a falar com o pai da Nova Ordem Energética Mundial.
A mulher já conhece demasiado bem os delírios dos bêbados com que se cruzou. Descruza as pernas, ajeita-se no banco do balcão e, acto contínuo, põe-se a olhar o empregado de balcão, como se tentasse imaginá-lo nu. Mas só consegue imaginá-lo da cintura para cima. Entretanto o homem parou de falar: fica parado, petrificado.
Empregado – Ainda bem para mim que ela não me consegue ver na totalidade: não gosto de aparecer em nu integral, ainda que na imaginação de outras pessoas.
Mulher – O discurso das personagens nunca pode ser interrompido. (Um movimento de cabeça indica que está a falar do homem sentado ao balcão) - Caso contrário, e se o actor for mau, as personagens ficam aprisionadas dentro do seu corpo. Ficam encarceradas como fantasmas, adormecidas no corpo dos actores e dizem as falas quando eles o esperam. Os actores deixam de poder controlá-las. (Pausa) Por isso, vou deixá-lo, para ver se se recorda do texto. (Pausa. Para o empregado) – Vou-me embora daqui. A que horas sais?
Empregado – Fecho o bar às cinco, e saio.
Mulher – A hora a que a cidade já dorme. Queres passar pelo meu apartamento? É aqui perto, na Baixa.
Empregado – E como te reconhecerei, e ao teu apartamento, no meio da multidão que dorme?
Mulher - (inclina-se para ele e sussurra) Durmo sempre com um olho aberto
Empregado- Ora aí está uma frase que só poderia brotar das melhores bocas.
4 Comments:
Tem qualquer coisa de Martin Crimp.
Já leste "Peça com Repetições?".ou os (A)tentados? É que parece. Muito do que aqui escreves, como o local (o bar), as personagens, tem tudo a ver. Continua. Quem sabe não teremos aqui um dramaturgo emergente?
Nunca vi trabalhos dele (andei a pesquisar, Assédio etc., e deveria gostar). Agrada-me essa ambiência: bares onde as pessoas partilham solidões, mesmo quando não são realmente ouvidas, espaços públicos onde se confessam intimidades, os "clichés film noir", personagens bi-dimensionais, diálogo esparso, etc etc, blá blá.
Este meu texto é incompleto, mal escrito, descontextualizado, etc. Por isso o publiquei (por assim dizer, que quase ninguém nos lê - aposto que nem o vladivostok por cá passa!). Mas gosto do texto por isso mesmo. E é despretensioso. E só não é "totalmente despretensioso" porque isso significaria que as ideias ficariam confinadas à minha cabecita, ainda mais desarticuladas, e não me daria ao trabalho de publicação (falemos assim). Talvez um dramaturgo afundante.
- What are you thinking?
- I`m not thinking; I`m sinking.
Eu tenho esses textos. Depois empresto-tos. Vais ficar a conhecer melhor. Este livro (A)Tentados e Peça com repetições está editada na Campo das Letras. Numa boa livraria e numa boa biblioteca poderás encontrar. Não sei se a de Tondela (que é um edifício bonito e moderno) tem. Se não, sugere a eles que comprem!
Abraço demiúrgico!
Eu li e gostei.
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