28 de setembro de 2007

Carta a Diogo Infante

Nas próximas semanas, vai morrer todos os dias. Como calcula, desejo-lhe sorte. Suponho que morrer não seja tarefa fácil, embora não tenha dados concretos para sustentar esta posição. Toda a gente me diz que morrerei também, um dia, mas não sei se acredite. Só porque todas as pessoas que viveram no mundo antes de mim acabaram por morrer, isso não quer dizer que eu morra também. Não sou supersticioso. Para dizer a verdade, não sei o que requer mais coragem: morrer, ou interpretar o Hamlet. Embora sejam duas actividades que se relacionem de mais que uma maneira, talvez encarnar o príncipe da Dinamarca seja mais arriscado do que, digamos, falecer. É que não há, no falecer, grandes hipóteses de errar. Falece-se, e pronto. Mas encarnar Hamlet pode dar-nos cabo da vida. Como a morte – lá está. Sócrates, ao que diz Platão, não só não tinha medo da morte como estava relativamente interessado em morrer. Dizia que, sendo a morte igual a um sono sem sonhos, só poderia ser bem-vinda. Parece que a Xantipa era uma esposa pavorosa e não é difícil imaginar as recriminações que lhe fazia. «Andaste outra vez na maiêutica com os teus amigos, meu vagabundo», «Já te disse para não filosofares na cama, que me deixas os lençóis cheios de sofismas». Enfim, o costume. Não admira que Sócrates estivesse ansioso por uma boa soneca, mesmo que fosse eterna. Hamlet não tem a mesma certeza de que a morte seja um sono sem sonhos. Receia que o undiscovered country possa ser um sono com sonhos terríveis. Se fosse apenas o sono sem sonhos de Sócrates, tudo seria mais simples para o príncipe dinamarquês.Curioso é que o herói de everyman (que, não por acaso, Philip Roth também põe a falar com um coveiro) parece estar tão certo como Sócrates de que a morte é um sono sem sonhos, mas isso já não lhe chega. Pelos vistos, para o homem moderno, a morte perdeu boa parte do seu encanto. A idade não perdoa, e a velhota também já não é o que era.Quanto a mim, só tenho uma hipótese: seja a morte o que for, o meu trabalho é fazer pouco dela. A minha missão é fazer aquilo que Hamlet sugere à caveira do bobo Yorick: «Vai procurar a minha senhora e diz-lhe que, por mais pintura que ponha no rosto, é a este estado que irá chegar. Fá-la rir disso. «Sempre acreditei que a vida será melhor para todos se conseguirmos rir disso.Boa sorte, por isso, para si e para mim.
Por Ricardo Araújo Pereira, in Jornal de Letras nº 965

2 Comments:

Blogger odeusdamaquina usou da palavra

Este hamlet, esta morte que perpassa, é tambám uma memória para o actor Pedro Alpiarça, que andou em diversos projectos, umas vezes com trabalho, outras sem ele. Triste condição de se ser actor - triste porque é uma mágoa que nos dói no peito- a melancolia de sermos intermitentes, como os semáforos avariados, sem funcionar. Conheci-o pessoalmente num Festival de Teatro, onde ele fez um bonito espectáculo com a Companhia de Teatro "O Nariz", de Leiria. O assunto de actor "batanetes" é redutor, é sintoma de um país que só reconhece o papel do mediatismo da imagem, da TV, do futebol que interrompe entrevistas, do populismo que interrompe a conversa séria, da banalidade que enche o jornalismo de sarjeta em troca do pensamento sólido e de uma aposta séria na educação. Todos os estrangeiros que vivem neste país realçam estes defeitos e porque é que nós não mudamos a agulha de vez? Este desabafo não é um chorrilho de patacoadas para esconder uma morte por desejo próprio, não, é para que o coração não se esqueça do que alguns fazem, porque a razão parece andar à deriva por este país!

29 setembro, 2007 00:03  
Blogger Aladdin Sane usou da palavra

Esta bateu, pá. Chegar a casa vindo do Pillowman e ler isto. Poderia pegar numa frase bonita: "live forever or die trying", ou ilustrar a "morte no teatro" com este poema:

MORTE DE TEATRO
[Heiner Müller - trad. Adolfo Luxúria Canibal]

Teatro vazio. Em cena um actor
Que morre segundo as regras da sua arte
O punhal na nuca. O ardor retomado
Um último solo, para pedir os aplausos.
E nem uma mão. Num camarim vazio
Como o teatro, um fato esquecido.
A seda sussura o que o actor grita.
A seda tinge-se de vermelho, o fato torna-se pesado
Com o sangue do actor que na morte se derrama.
Sob o esplendor dos lustres, que faz empalidecer a cena
O fato esquecido bebe e esvazia as veias
Do moribundo, que não se assemelha mais do que a ele mesmo
Perdida a alegria e o terror da metamorfose
Seu sangue uma mancha de cor sem retorno


Mas ainda assim seria pouco. Porque vós, actores, não sois intermitentes quando acreditam no trabalho que fazem e na convicção com que seguem o vosso rumo, por mais fucked-up que sejam as condições. Como se não bastasse, quando encontramos locais com todas as condições e mais algumas a serem geridos por gente que não tem sensibilidade para o papel da cultura e onde as funcionárias ficam, em vez disso, entusiasmadas - utilizo um eufemismo - com um congresso de cardiologia! (Como deves calcular, está relacionado, ainda que indirectamente, com o futebol que interrompe entrevistas).

Mas hoje estou feliz por ter finalmente visto o tal Homem-almofada. Portentoso.

29 setembro, 2007 01:27  

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