30 de agosto de 2007

A Vida (a Primeira)

«Atenção/ Essa vida contém cenas explícitas de tédio/ Nos intervalos da emoção// Atenção/ Quem não gostar que conte outra,/ encontre, corra atrás,/ enfrente, tente, invente/ sua própria versão// Aqui não tem/ segunda sessão» – quem o canta é Arnaldo Antunes, um dos mais geniais letristas brasileiros. É saudavelmente irónico, porque a percepção geral é que a vida tem cenas de emoção no intervalo do tédio. Se fosse um jogo, raramente teria graça. Passamos um terço do tempo a dormir e outro tanto a trabalhar. Depois temos que comer, beber, ir à casa-de-banho, passamos horas no trânsito, a fazer compras no supermercado, na sala de espera do consultório? Sobra pouco. E o pouco que sobra, geralmente, não sabemos aproveitar. Ainda por cima, como dizia Manuel da Fonseca, todos temos a consciência de que «isto de estar vivo um dia acaba mal».O Game Over é inevitável.O Second Life pode sugerir a ideia de se viver duas vezes, a segunda sessão de que fala Arnaldo Antunes, num universo fantasioso. Um local onde todos podem ser felizes. Ou aproximarem-se do que sonharam ser. Em termos físicos, relacionais, emotivos, profissionais. Uma doce ilusão de vida além da vida. Mas mais do que isso é um meio de comunicação e sociabilização virtual e pós-moderno, ao exemplo dos chats e dos blogues. E como tal deve ser mais aplaudido do que repudiado. O homem afirma-se mais uma vez como animal social e tudo se resume ao objectivo de chegar ao outro. E o isolamento, em frente a um computador, é apenas aparente. As novas tecnologias proporcionam a comunicação interplanetária a um nível anteriormente impossível. Há uma busca de pontos em comum. É por isso que, curiosamente, o Second Life tem vários Littles Portugal. Os avatares portugueses organizam-se em comunidades tal como se estivessem emigrados no estrangeiro. Ou, como diz Paulo Frias, são novos colonos, que, por uma questão de identificação e segurança, estabelecem comunidades em paraísos distantes. Apenas fica de fora o contacto físico, que aqui é apenas sugerido virtualmente. O que levanta várias questões: o medo do toque, da pele, a vergonha do corpo, numa sociedade dominada pela publicidade em que as pessoas se querem bonitas, magras, atraentes. O que cria indivíduos, sobretudo adolescentes, frustrados por nunca poderem alcançar esse exigente patamar de beleza, por mais horas que passem no ginásio. Esse é outro atractivo do Second Life em que, por tudo ser irrepreensivelmente belo, a beleza torna-se um aspecto redundante. Pode-se assim chegar ao outro para além do corpo. Não sei se alguém é suficientemente louco para confundir a plataforma com uma segunda vida. A vida – a primeira, única e irrepetível – essa é que é tão rica que até nos permite experiências tão alucinantes quanto este falso jogo.
Por Manuel Halpern, in Jornal de Letras, nº 962 e-mail:homemdoleme@edimpresa.pt