31 de agosto de 2007

Ruas com Histórias

Na Feira da Ladra descobre-se de tudo. Nem é preciso procurar muito, as coisas saltam-nos à vista. A colecção de bonecas sem braços, os azulejos pombalinos que alguém tirou de um qualquer palácio, os relógios, os vinis, os quadros, os gramofones, a roupa desbotada ou nem por isso, os serviços de loiça, as ferramentas enferrujadas, as partituras rasgadas, os jornais de outras épocas, as gavetas sem móveis, os candeeiros sem luz. Mas na Feira (merece a caixa alta) há sobretudo personagens. Habituados a levantarem-se às cinco da manhã (ou mais cedo ainda), às terças e sábados, os vendedores sabem todos os truques. São deles os melhores lugares nas ruas, garantidos pelos anos; são deles as melhores pechinchas, deles os melhores negócios.Há os mais profissionais, munidos de Multibanco, e há os outros, os que vendem fiado por conhecerem de cor a cara de quem lá passa; os que guardam objectos por terem pensado que um cliente podia deles gostar; os que têm sempre um sorriso. São deles os mais rápidos «Bons dias!». E há os que contam histórias, suas ou dos objectos, inventadas ou reais, não importa. As histórias ouvidas na Feira têm sempre outro sabor, como tem outro sabor o café tomado no mercado, atrás do balcão que não prima pela limpeza. Sabe a Feira. E isso basta.Uma das minhas histórias preferidas é a de um prato. Gostei dele. Azul, com palácios desenhados, dois barquinhos, quatro figuras e no topo dois pássaros entrelaçados como se dessem um beijo. Sacramental pergunta: «Quanto é que me faz por isto?» (Nunca se pode dar a entender que se gostou muito de uma coisa, e dizer «isto» dá sempre um ar displicente.) «Sabe que esse prato conta uma história de amor. Uma princesa apaixonou-se por um pescador, o pai, imperador, não gostou da ideia e enquanto preparavam a fuga mandou matar o pescador. A rapariga soube do sucedido e suicidou-se. Agora são esses dois pássaros do topo. Só no voo podem amar-se». Irresistível! Em minha casa há uma parede para este amor.

Por Francisca Cunha Rêgo, in Jornal de Letras nº 962

3 Comments:

Blogger Afectos usou da palavra

Bons textos.Boa actualidade. Bom conceito. Que deverá sempre ser palpável.

31 agosto, 2007 16:57  
Blogger odeusdamaquina usou da palavra

E aqui eu digo sempre quem são as fontes. Para mim não há plágio! Basta-me o plágio de mim mesmo!

01 setembro, 2007 11:41  
Blogger Afectos usou da palavra

Idem (bom conceito). Só me dera a mim não ser preguiça.

01 setembro, 2007 13:11  

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