A vida como televisão
Eduardo Lourenço, in Jornal de Letras 957 (06 de Junho de 2007)
A nossa geração esperava que com o «fim da Utopia», quer dizer, com o fim da ilusão não apenas de que a História é portadora de um sentido que nós apreendemos podendo modelar o nosso futuro em função dele, mas que o «estado do mundo» fosse mais aceitável do que o que acabámos de viver até à implosão da União Soviética. É não é o caso. Os amanhãs do fim da utopia são tão inaceitáveis como o foram os do século passado. Isso não significa que estejamos vivendo qualquer objectivo «fim da história». Significa apenas o fim da história como a si mesma transparente.
Este facto pode e deve ser vivido como positivo, mesmo se nos deixa nus. Podemos mesmo vivê-lo como um grau superior de lucidez se estivermos à altura dos desafios que a morte das antigas utopias mortíferas também significa. É mais aceitável saber que não existe Sentido algum para a marcha humana, salvo aquilo que ela mesma fabrica com a sua irresistível vontade de compreender e dominar o mundo – o da natureza e o seu próprio para a si mesma se compreender.
Uma leitura «metafísica» do estado do mundo é menos interessante – ou até inviável do que a consideração mais óbvia de que o estado do nosso mundo se distingue de todos os que nos precederam, não tanto pelo grau de caoticidade histórica, política, ética, religiosa, cultural e social que o caracterizam como pelo facto de que esse caos é o anverso do sucesso no limite do ainda inimaginável de uma manipulação hiper-racionalizante de todos os conteúdos da experiência humana ou dos dados sobre que se funda. Este controle da nossa vida em todos os seus aspectos esteve sempre a caminho, pelo menos no Ocidente, mas o grau de auto-manipulação que nos caracteriza autonomizou-se a tal ponto que na verdade, nem tem verdadeiro sujeito. A acção genética é só o símbolo da auto-manipulação da Humanidade por si mesma. Nada nos escapa e, paradoxalmente, a título humano não somos donos de nada. O famoso «estado do mundo» é pura exterioridade. Funciona não como um super-ego (o antigo Deus ou as suas monstruosas contrafacções) mas como uma sociedade infinitamente anónima.
De uma maneira concreta, o estado do mundo é o nosso mundo como televisão: um céu e um inferno portáteis ao nosso alcance, noite e dia. Numa recente crónica n’O Público Nuno Pacheco fala de uma mulher do Butão, onde a televisão acaba de chegar e que vive e dorme literalmente colada a ela a todo o instante. É a melhor imagem do estado do mundo que se pode imaginar. Esta nova forma de vida virtual é uma autêntica novidade. É a imagem da nossa civilização como subproduto da mais fascinante das invenções, aquela que, na aparência, como já o era a fotografia, não nasceu para nos fazer esquecer a realidade, mas para conservar a efémera realidade dela. O efeito foi inverso: nós preferimos a virtualidade à realidade. A autêntica realidade, por exemplo, a da inamovível miséria, torna-se irreal pelo seu tratamento televisivo, e o crime, além de irreal, evapora-se pela sua contínua sublimação tornada rentável pela mesma tradição. É uma espécie de escândalo obsoleto e absoluto de consumidores angélicos da pura e inexistente virtualidade.
E a Cultura? Quem a escreve ainda com maiúscula, se não a título paródico ou póstumo? Durante séculos não teve nome. Foi a sua idade de ouro, a de Homero a Dante. Depois, foi uma longa vigília e combate com e a propósito da esfinge da realidade, foi a da sua idade da prata, de Cervantes a Flaubert, que a «odiava» (a Realidade), e nesse combate inventou a primeira versão da virtualidade como realidade, quer dizer, a Literatura. Quando os horrores reais e neles a ainda realíssima existência a suplantaram, só a fuga para a virtualidade pura nos consolou ou nos serve de refúgio. O «estado do mundo» como jogo permanente é a vida como televisão. Eficaz, nenhum horror real (tsunami ou serial killer apocalípticos) tem o condão de nos acordar. A única caverna verdadeiramente platónica (a televisão) continuará a emitir quando já não houver ninguém para a contemplar. Só a fuga para a virtualidade pura nos consolou ou nos serve de refúgio. O «estado do mundo» como jogo permanente é a vida como televisão.
Ensaísta, escritor, Prémio Camões
Este facto pode e deve ser vivido como positivo, mesmo se nos deixa nus. Podemos mesmo vivê-lo como um grau superior de lucidez se estivermos à altura dos desafios que a morte das antigas utopias mortíferas também significa. É mais aceitável saber que não existe Sentido algum para a marcha humana, salvo aquilo que ela mesma fabrica com a sua irresistível vontade de compreender e dominar o mundo – o da natureza e o seu próprio para a si mesma se compreender.
Uma leitura «metafísica» do estado do mundo é menos interessante – ou até inviável do que a consideração mais óbvia de que o estado do nosso mundo se distingue de todos os que nos precederam, não tanto pelo grau de caoticidade histórica, política, ética, religiosa, cultural e social que o caracterizam como pelo facto de que esse caos é o anverso do sucesso no limite do ainda inimaginável de uma manipulação hiper-racionalizante de todos os conteúdos da experiência humana ou dos dados sobre que se funda. Este controle da nossa vida em todos os seus aspectos esteve sempre a caminho, pelo menos no Ocidente, mas o grau de auto-manipulação que nos caracteriza autonomizou-se a tal ponto que na verdade, nem tem verdadeiro sujeito. A acção genética é só o símbolo da auto-manipulação da Humanidade por si mesma. Nada nos escapa e, paradoxalmente, a título humano não somos donos de nada. O famoso «estado do mundo» é pura exterioridade. Funciona não como um super-ego (o antigo Deus ou as suas monstruosas contrafacções) mas como uma sociedade infinitamente anónima.
De uma maneira concreta, o estado do mundo é o nosso mundo como televisão: um céu e um inferno portáteis ao nosso alcance, noite e dia. Numa recente crónica n’O Público Nuno Pacheco fala de uma mulher do Butão, onde a televisão acaba de chegar e que vive e dorme literalmente colada a ela a todo o instante. É a melhor imagem do estado do mundo que se pode imaginar. Esta nova forma de vida virtual é uma autêntica novidade. É a imagem da nossa civilização como subproduto da mais fascinante das invenções, aquela que, na aparência, como já o era a fotografia, não nasceu para nos fazer esquecer a realidade, mas para conservar a efémera realidade dela. O efeito foi inverso: nós preferimos a virtualidade à realidade. A autêntica realidade, por exemplo, a da inamovível miséria, torna-se irreal pelo seu tratamento televisivo, e o crime, além de irreal, evapora-se pela sua contínua sublimação tornada rentável pela mesma tradição. É uma espécie de escândalo obsoleto e absoluto de consumidores angélicos da pura e inexistente virtualidade.
E a Cultura? Quem a escreve ainda com maiúscula, se não a título paródico ou póstumo? Durante séculos não teve nome. Foi a sua idade de ouro, a de Homero a Dante. Depois, foi uma longa vigília e combate com e a propósito da esfinge da realidade, foi a da sua idade da prata, de Cervantes a Flaubert, que a «odiava» (a Realidade), e nesse combate inventou a primeira versão da virtualidade como realidade, quer dizer, a Literatura. Quando os horrores reais e neles a ainda realíssima existência a suplantaram, só a fuga para a virtualidade pura nos consolou ou nos serve de refúgio. O «estado do mundo» como jogo permanente é a vida como televisão. Eficaz, nenhum horror real (tsunami ou serial killer apocalípticos) tem o condão de nos acordar. A única caverna verdadeiramente platónica (a televisão) continuará a emitir quando já não houver ninguém para a contemplar. Só a fuga para a virtualidade pura nos consolou ou nos serve de refúgio. O «estado do mundo» como jogo permanente é a vida como televisão.
Ensaísta, escritor, Prémio Camões
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