22 de março de 2007

A Purga de Estaline (Parte II)

Vassili e Techernenko deixaram Abu numa pequena sala e indicaram-lhe que esperasse até ser chamado. A sala tinha uma decoração muito minimalista. Apenas possuía um banco comprido de madeira estofado em veludo escarlate, um busto de Lénine e um grande quadro pendurado na parede. No quadro estava representado um episódio de uma batalha naval onde o cruzador Oktiabrskaia Revoliutsia (Revolução de Outubro) bombardeava uma fragata de guerra da poderosa armada do 3º Reich. Abu olhava o quadro com muita minúcia. Era sem dúvida uma obra-prima do Realismo Soviético. Quase se sentia o sabor da água salgada mesclado com o cheiro a hidrocarbonetos e a pólvora queimada. Ouvia-se o som das canhoeiras e dos gritos dos marinheiros que agonizavam encharcados em sangue. De súbito aparece alguém. Abu ficou especado à espera que lhe falassem. Era o comissário político de Estaline.

- Camarada Abu Orabi, o chefe do Soviete Supremo, camarada Josef Estaline não pode atendê-lo de momento, pois está a fazer uma purga.

Abu ficou atarantado. A percorrer a sala de um lado para o outro, começou a sentir um nó a aperta-lhe o estômago e uma súbita vontade de vomitar. Não era para menos, a última depuração realizada por Estaline teve como resultado milhares de mortos e prisioneiros deportados para a Sibéria. Abu ainda pensou em fugir, mas não valia a pena, Estaline iria persegui-lo até ao fim do mundo, declarava-o inimigo do Povo, e a sentença era conhecida: trabalhos forçados até à morte. O tempo que esperou até ser chamado novamente parecia uma eternidade. Por fim, a altura chegou. Entrou no gabinete onde se encontrava Estaline que aparentava um certa serenidade. Abu pensou para si próprio “Sacana, deve ter acabado sentenciar milhares de pessoas do seu próprio povo”. O seu pensamento foi interrompido pela voz de Estaline:

- Camarada Abu Orabi quero em primeiro dar-lhe as boas-vindas. Queira desculpar-me o facto de ter esperado algum tempo mas, estive aqui a fazer uma purga. Sabe, uma purga…Aliviar os intestinos.

Estaline manteve-se alguns segundos em silêncio. De súbito solta uma gargalhada, que desencadeou uma onda de riso a bandeiras despregadas em todos os presentes no gabinete. Abu sem saber muito bem o que fazer também esboçou um sorriso com um certo nervosismo. Estava mais sereno. Afinal a purga de Estaline era simplesmente uma soltura intestinal.
A ideia repugnou-o, estava agora a imaginar um cenário, onde Estaline estava sentado numa sanita com uma cara de esforço a descarregar tudo o que continha nas entranhas. Nunca lhe tinha passado pela cabeça tal visão dantesca. Mas é claro que Estaline era humano (era mesmo?) e tinha obviamente as suas necessidades fisiológicas.

Após este breve momento de riso, Estaline explicou-lhe a tarefa que este iria levar a cabo. Do 6º plano quinquenal fazia parte o desenvolvimento económico das repúblicas socialistas soviéticas da ásia- central, particularmente o Cazaquistão, pela importância vital que lhe era atribuída devido ao próspero cosmódromo em Baikonur, as plantações de algodão e os poços de petróleo. Foi então que Abu ficou a conhecer as suas funções na construção da central nuclear que iria ser erigida para fornecer energia eléctrica alimentando assim o comódromo que cada vez mais necessitava de energia. A central iria também fornecer corrente eléctrica a todo o território sul do Cazaquistão e às repúblicas vizinhas do Quirguizistão e Uzbequistão. Estaline explicara também que a escolha tinha recaído sobre Abu devido à sua dedicação ao Partido e à causa Socialista. Notabilizou ainda o excelente trabalho realizado na Mongólia.

Foi condecorado com a Ordem da Confiança entre os Povos por ter aceite a nobre tarefa que lhe tinha sido proposta. A medalha tinha uma inscrição em cirílico, uma frase de Lénine que versava: “Só a Verdade é Revolucionária”. As medalhas da Ordem da Confiança eram emitidas pelo Ministério da Verdade. Este ministério era o garante da segurança da nação, pois controlava tudo e todos para assegurar que os traidores não embargavam a construção da Pátria Socialista. Feitas as despedidas, Abu foi entregue no aeroporto e voltou de regresso para Alma-Ata onde iria reunir-se com uma equipa de técnicos da sua inteira confiança para começar a delegar tarefas. Quando chegou a casa a primeira atitude que teve foi guardar religiosamente a medalha da Ordem da Confiança.

Já tinham passados dois anos desde que Abu se encontrara com Estaline. O dia de trabalho tinha chegado ao fim. Tinha sido um dia esgotante mas muito recompensador, pois a sua equipa tinha finalmente acabado de instalar o segundo reactor que brevemente iria começar em testes para começar a produzir energia. Até agora tudo estava a correr bem. O segundo reactor iria iniciar a sua actividade dois meses antes do prazo definido pelo partido. Naquela noite Abu foi para cama com o sentimento de dever cumprido, adormeceu e dormiu o profundamente.

Repentinamente é acordado por alguém a falar inglês de uma forma embrutecida:

-Lazy bastard. Fill my pick-up truck with 40 gallons of gas. And faster or I kick your fatty ass.

Ao abrir os olhos não reconhece imediatamente onde está. Esfrega os olhos, e cai na realidade. Afinal tudo não passava de um sonho. Não havia nenhum Abu Orabi, do Cazaquistão, havia um Jonh Garcia que trabalhava numa “gas station” em Hoboken no estado de New Jersey.
Ainda meio trôpego e com alguma moleza, John lá se resignou a abastecer o depósito de gasolina da “pick-up truck” do xerife que orgulhosamente trazia um autocolante no vidro traseiro que dizia: “ Support our troops in Vietnam”.
Finalmente chegara o seu colega para a passagem de turno. John ia finalmente para sua o seu lar.

Vivia num parque de roulotes com a sua esposa Peggy Sue. Não tinham filhos. Peggy preparava o jantar aguardando pela chegada de John.
John ao entrar na roulote, contou imediatamente o seu sonho à sua companheira.
Quando Peggy se apercebeu do teor do sonho, rapidamente lhe perguntou se John tinha passado pelo bar do Tweegy. John acenou com a cabeça dando uma resposta negativa. Peggy voltou a insistir:

- Encontraste alguém pelo caminho? Falaste com alguém sobre o sonho?
A resposta de Jonh voltou a ser negativa.

- Thank You all mighty God! – Suspirou a mulher, apontando as duas mãos ao céu.

-Ainda te lembras porque é que não podemos ter filhos?- Pergunta Peggy com alguma raiva.
-Lembro.- responde John, cabisbaixo e com ar de quem se assume culpado de algo.

John era um convicto entusiasta da causa bolchevique. Tal como os fiéis de Maomé têm de ir a Meca pelo menos uma vez antes de morrer, John queria visitar cada uma das capitais das repúblicas socialistas soviéticas antes de morrer. Como essa viagem era impossível de se concretizar, Jonh materializava os seus desejos através de sonhos, tal como o que tinha sonhado naquele dia. Mas outros sonhos houvera. Um deles, John foi contá-lo no bar que habitualmente frequentava. Não bastou muito para que o que John não estivesse na delegação local da CIA a levar uns murros no estômago e uns pontapés nas costelas. Nesse sonho, Jonh era um influente e decisivo general das brigadas de morte e extermínio do cambodjano, Plopoplot Pot.
John foi acusado de antipatriotismo. Além de lhe partirem as costelas e de ter ficado com a boca toda rebentada, ainda lhe fizeram uma castração química. Diziam que para bem da nação, John não deveria deixar descendência.

Peggy Sue, abraça John, beija-o levemente nos lábios e diz-lhe:

- Gosto muito de ti e não quero que nada te aconteça. Promete-me que não voltas a falar dessas tretas marxistas-leninistas.

Nessa mesma noite, John voltou a sonhar. Não se sabe o que sonhou. Pois a partir desse dia nunca mais revelou os seus sonhos a ninguém.

Ao mesmo tempo, algures na imensa Sibéria, Oleg Ladislav, prisioneiro político num gulag, trabalhava com um frio de – 30º C. Oleg desejava nunca ter nascido soviético.

FIM

1 Comments:

Blogger Aladdin Sane usou da palavra

Hoboken. Frank Sinatra - a voz. Mas principalmente Yo La Tengo - ou, como dizia o Alhinho, "yo la tengo en...").

O Adolf foi o nosso verdadeiro educador, empreendeu uma silenciosa e incompreendida Revolução Cultural. Der Spiegel, Yo La Tengo, Mouse on Mars, Recoil, Ian Simmons, depois eu já armado em vedeta com a Laurie Anderson na pasta.

A continuação desta história: o Garcia chateia-se com a Peggy Sue e resolve pô-la a andar: "Peggy Sue as malas e vá-se embora!" Peggy assim o fez, meses mais tarde encontrou um ricaço que dela se embeiçou. The next thing you know, Peggy Sue casou-se, com direito a filme e tudo.

(Mrs. Pity, salvai-nos! Mrs. Pity, valei-nos nágonia!)

22 março, 2007 16:15  

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