6 de janeiro de 2007

interiores


O Trigo Limpo Teatro ACERT está a desenvolver o projecto "Interiores", que consiste na concepção de espectáculos a partir de dois textos de autores de língua portuguesa escritos especialmente para o projecto. "Duas Histórias de Solidão / Duas Histórias a Sós", o primeiro desses espectáculos, estreou a 1 Dezembro - primeiro dia do 12º FINTA no Novo Ciclo. Esperei mais de um mês para falar do espectáculo devido ao... afastamento pernilliano.

Assisti à terceira apresentação de "Interiores". Depois da balbúrdia saudável que caracterizou a estreia, a sala estava bem composto de público, mas não lotada. Comecemos (por assim dizer). São duas personagens, duas histórias, dois mundos que partilham palco, cenário e adereços.

Primeira história. Raquel Costa interpreta uma personagem feminina de que não se vem a saber o nome - por isso largo o pudor na valeta e passo a chamá-la Violeta. Violeta é uma mulher amargurada, ultrapassada pela voragem da passagem do tempo (cá está o meu primeiro cliché, só faltou utilizar o termo "inexorável".) Violeta assiste à tomada de posse de um amor antigo - de sempre? - na televisão. Está sozinha, e recorda os tempos em que estavam juntos, por alturas do PREC. A mudança do país e o afastamento do camarada sem nome deixam Violeta encarcerada em si própria, naquilo que era.

O texto de Eduarda Dionísio ("do avesso e do direito") constitui o elemento menos conseguido de todo o espectáculo. Para além de excessivamente extenso, é por vezes confuso, com algumas incursões pelo campo do humor que apenas arrancaram da plateia alguns arremedos de gargalhada. (O trocadilho entre os PC`s revelou-se confrangedor). E datado, pelo menos para mim, a quem o PREC pouco evoca. "Não estava lá".
Tarefa difícil, portanto, a que se deparou ao encenador e à actriz.

Difícil, mas superada. Raquel Costa construiu uma personagem perfeitamente coerente e verosímil. A sua postura corporal, o nervosismo dos gestos, a gestão do silêncio e das inflexões na voz, tudo isso ultrapassou as limitações do texto. Violeta apercebe-se que a sua existência ficou retida num qualquer baú de memórias, mas consegue conservar a lucidez e o amor-próprio, não sucumbindo ao ressentimento.
A despropósito, Violeta faz-me lembrar uma personagem secundária de "Mulholland Drive" de David Lynch: a vizinha de Diane quando Betty e Rita a procuram nos apartamentos Sierra Bonita... pois... ver esse filme compulsivamente dá nisto.
Bom, o que importa é mesmo realçar o excelento trabalho dos actores - Pompeu José é-o também - na adaptação deste "do avesso e do direito".

Segunda história. Interpretação de Ruy Malheiro (e Paulo Neto) a partir de "o mal de Ortov", de Jaime Rocha. Ortov é um homem à beira de cometer uma loucura. "Estou mal!", assevera-nos. Pormenor delicioso (comentário distanciado!): quando Ortov inicia o discurso não lhe conseguimos ver os olhos, apenas vemos duas cavidades negras. Pormaiores do desenho de luz...
Ortov é um suburbano que vive só, e vem confessar-nos um assassinato que não tem a certeza de ter cometido. Este "assassino histérico" desfia-nos pedaços de conversas - reais ou imaginárias - com a dita vizinha e com o psiquiatra. Não quer ser julgado pelos tribunais, mas pela turba que assistirá ao directo televisivo onde será - assim o espera - condenado e onde concretizará a sentença. Vivência suburbana, problemas de vizinhança, o quarto poder - cliché, cliché, cliché.

Mas o texto de Jaime Rocha esquiva-se à banalidade através do recurso ao humor e à multiplicação de personagens que Ortov nos expõe. O autor consegue equilibrar bem o texto, conferindo-lhe um tom humorístico sem retirar com isso densidade a Ortov. E este equilíbrio é respeitado pelo Trigo Limpo. A interpretação de Ruy Malheiro doseia muito bem o humor, inteligente e por vezes hilariante - como nas conversas com o psi - com a gravidade de quem está disposto a responder perante a soberania popular, evitando cair na caricaturização da personagem e no overacting.

E eis que chegam "os senhores da televisão". Nessa altura o desenho de luz transporta-nos para outro ambiente, a irrealidade criada pelos holofotes da TV. O palco é invadido por uma luz intensa, fria e azulada - outro despropósito: a fazer lembrar "Purificados" de Sarah Kane, encenação de Nuno Cardoso. Já o destino de Ortov não é para ser aqui relatado. Não conto, não conto, não conto.

Está de parabéns o Trigo Limpo por mais esta produção, que será novamente apresentada ao público em Tondela nos dias 19 e 20 de Janeiro, pelas 21h45. A ver.
E aproveitem para escolher outro nome à personagem da Raquel Costa. Violeta é um nome mauzinho...

imagem retirada de www.acert.pt

8 Comments:

Blogger Dinis Medo usou da palavra

Já vi e gostei bastante.
A dicotomia de dois seres!
Será isso real nas vidas de hoje?

07 janeiro, 2007 03:38  
Anonymous Anónimo usou da palavra

Que tal Maria Lilás?

08 janeiro, 2007 12:36  
Blogger Aladdin Sane usou da palavra

Correndo o risco de nos afastarmos do essencial, pensei em Violeta Roxo.

09 janeiro, 2007 04:15  
Blogger vareta usou da palavra

Só gosto de kabuki. E de noh.

Assim como assim, não percebo nada e poupa-me o trabalho da exegese.

09 janeiro, 2007 07:32  
Blogger RPM usou da palavra

Violeta é um nome!!!

poderia ser Violante...ou Gertrudes, ou Genovéva, ou....

um abraço de amizade pela elucidação da estória

abraço amigo

RPM

09 janeiro, 2007 10:11  
Blogger O Micróbio II usou da palavra

Que mal tem Violeta? O colorido do nome até assenta bem na amargura da personage... :-)

11 janeiro, 2007 09:57  
Blogger Al Cardoso usou da palavra

Interiores, deve ser bonito interiormente falando!

14 janeiro, 2007 16:18  
Blogger Aladdin Sane usou da palavra

Dinis:
Tropeço em Ortovs e Violetas a cada esquina que dobro.

odeusdamaquina:
Violenta Roxo (uma violent femme)

vareta:
E se for Toshimi? Ou Minako? Há consenso?

rpm:
Juntemos os nomes por ti sugeridos: Eva Truvi.

micróbio:
nada como o pendant entre a personagem e o seu nome!

Albino:
Um monólogo pode ser um espectáculo de difícil "assimilação" pelo público. Mas, se o texto for bom, podemos entrever-nos - enquanto indivíduos ou sociedade - nas personagens.

A todos:
Cumprimentos calorosos e vaporosos.

14 janeiro, 2007 18:06  

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