14 de novembro de 2006

groin pains

Graeme Pulleyn é um actor, encenador e dramaturgo inglês que no início da década de noventa assentou arraiais na aldeia de Campo Benfeito, concelho de Castro Daire, onde foi co-fundador do Teatro Regional da Serra de Montemuro (profissionalizando um grupo de teatro amador já existente). Ali permaneceu durante quinze anos. E a vivência nesse meio profundamente rural ficou impregnado em Graeme Pulleyn, como um ácido se impregna... nevermind.

Tudo isto para falar de "Dimas", espectáculo que Graeme concebeu e que faz desfiar perante nós a vida de... Dimas, nado e criado numa aldeia inóspita e sem nome. O espectáculo assenta numa simplicidade de meios. Dois actores (Graeme e a jovencita Susana Branco) compuseram quase todas as personagens - ainda que não largando o seu contrabaixo, Bica interpretou uma. A música - ao vivo - brotou (ui que poético!) do violoncelo de Carlos Bica (que cada vez mais exala coolness), e Susana Branco impressionou também pela sua técnica vocal. Figurinos reduzidos ao essencial; os adereços eram, pude contá-los, quatro (talvez cinco). E há um aderino (ou será figureço?) que marca a diferença. Um manto de duas cores que quase se tornou uma personagem. No final do espectáculo, confesso que fiquei à espera que o manto se levantasse para agradecer a ovação de pé. Apenas faltou um desenho de luz à altura da peça.

Mas onde esta criação de Pulleyn ganhou foi sobretudo no texto, de uma grande riqueza dramatúrgica, que nos remeteu para as ambiências dos mais rudes meios campestres do nosso interior. A narração da vida de Dimas, na primeira pessoa, transportou-nos para aquelas aldeias que um obstáculo intangível parece separar do mundo real (como a aldeia de A Vila, de M. Night Shyamalan), mas que adquirem uma identidade muito vincada por essa quase ausência de contacto com o mundo exterior - ao invés de muitas localidades, em que a industrialização descaracteriza a paisagem. Em "Dimas", é o meio que condiciona o desenrolar da acção desde a cena inicial, em que a mãe morre ao dar à luz a sua irmã. A ausência do pai, entregue aos cuidados da taberna da aldeia, faz com que Dimas tome conta da irmã Isabel. Vivem portanto juntos as "dores de crescimento", isto enquanto Dimas trabalha arduamente numa mina, que lhe serve também de refúgio.

Graeme retrata muito bem a opressão que os meios rurais isolados oferecem, passe o termo, aos que neles vivem. Numa pequena aldeia, qualquer discussão pode facilmente assumir contornos de tragédia. A honra "lava-se" muitas vezes à sacholada, ao tiro ou até à mordidela (há mais de trinta anos, no sítio onde vivo, um homem arrancou parte da orelha a outro durante uma discussão - terá vindo daí a alcunha de "Escaravelho" posta ao canibal em potência?). Um meio pequeno pode também tornar-se enclausurante quando nos vemos confinados a um ritual de árdua labuta diária que nos embrutece, e isso acontece também com Dimas e a sua mina, onde a dada altura passa a trabalhar afincadamente toda a noite, noites a fio. O casamento de Isabel interrompe a vida em comum que até então tinham, e Dimas finalmente aceita a "partida" da irmã, numa algaraviada típica das festas de aldeia, bem regadas comme il faut.

Mas a separação definitiva ocorre quando Isabel emigra para o longínquo Canadá; a partir daí, apenas mantêm contacto através das cartas que uma miúda lê a um analfabeto e envelhecido Dimas. E é absolutamente tocante ouvir as saudades de Isabel da sua terra natal, da aldeia onde viveu e principalmente do seu querido irmão. E nessa altura o que vemos em palco são aquelas expressões nostálgicas que os mais velhos deixam transparecer quando recordam a vida de antanho, sabendo que se trata apenas de recordações e que os movimentos do corpo já não são capazes de acompanhar a destreza da memória.

Às vezes tento imaginar como seria se pudesse, durante alguns minutos, trocar de lugar com um desses velhos que passeiam pelas nossas ruas. Como verão eles este mundo, demasiado rápido já para a sua placidez? Será que a informação que os seus sentidos absorvem é processada em slo-mo pelo cérebro? E em que pensarão? Aquilo que para nós são actos banais, como ir à farmácia, tornam-se por vezes o ponto fulcral de um dia inteiro para eles. Será que repetem interiormente “a consulta, os comprimidos, os comprimidos, a receita, apanhar o autocarro” até à exaustão? E qual será a sensação daquele caminhar periclitante, tão bem descrito pelo Daniel Abrunheiro?
"… eram aldeãos de botas de borracha com hábitos e hálitos de aguardente, eram mulheres velhas vestidas de negro e desconjuntadas como guarda-chuvas”
e será que se sentem tão à margem do mundo quanto por vezes parecem?

Já não me lembro com precisão de como acaba a história (já foi há um mês). Mas “Dimas” arrancou-me da cadeira da plateia para me transportar a um mundo do qual já só conhecemos alguns vestígios, quando passamos um fim-de-semana no “exotismo” do interior do nosso país ou aquando dos incêndios de Verão, mas que muitos de nós ainda recordamos dos tempos da infância. E, no final do espectáculo, o meu corpo foi devolvido à sala, sorrindo muito. Graeme Pulleyn prestou a reconhecida homenagem ao lugar e aos amigos de Campo Benfeito – “lá longe”.


Queiram ler também este texto sobre o espectáculo.

2 Comments:

Anonymous Anónimo usou da palavra

É curioso que sejam os estrangeiros a revitalizar o "nosso interior"... uma homenagem a esse homem, de nome Graeme Pulleyn.

14 novembro, 2006 16:59  
Anonymous Anónimo usou da palavra

Conhecer aquela aldeia, aquelas gentes, aquela companhia, o graeme, o frio da serra, dá-nos a noção de um viver ancestral, mais íntimo com a vida, amarrado às raízes. E isto, vindo de um inglês!
Parabéns a esse meu companheiro de viagens, à Susana Branco (que actriz!), e aos outros companheiros de viagem!

16 novembro, 2006 16:15  

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