Boris - o final
... com banda sonora e tudo, para que não vos custe tanto a ler! (ver parte final do post)
De entre os episódios caricatos que ocorreram a Boris nessa altura, destaco - pelo picotado - o encontro que teve com um casal, ambos na casa dos quarenta anos, que em plena duna se preparavam para cumprir os seus deveres conjugais - expressão pouco conseguida, como se a cópula fosse uma obrigação, “deveres” era o nome que antigamente se dava aos trabalhos de casa da escola, ouvisse falar em deveres conjugais há uns anos atrás e torceria decerto o nariz, pois detestava ter de conjugar os verbos em casa, e os meus pais que não me compraram uma gramática... preparava-se então o casal para as vias de facto, enlaçados, e eis que surge perante eles Boris, desnudado, cabelo desgrenhado, pele tisnada pelo Sol (pois o que mais poderia tisnar a pele por aquelas paragens?)
- Que fazes aqui? – disse o homem, algo amedrontado, depois de a mulher ter soltado um grito.
- Vagueio pela praia, medito, jejuo.
- Mas não devias estar aqui! Não tens um pingo de decoro? - fez uma pausa, aguardando resposta - Nem um?
-Não deixem que a minha presença vos intimide. Não vos olho numa perspectiva puramente sexual, estou acima disso! Entendo o vosso acto como uma comunhão entre os dois e com todo o universo!
Mas o casal não aceitou o seu ponto de vista. Enquanto a mulher permanecia deitada na duna, visivelmente constrangida, o homem levantou-se com um salto para trás e deu de seguida três saltos para a frente – vale isto por dizer que se aproximou de Boris. Tinha as faces enrubescidas, não só pelo que acabara de acontecer mas principalmente pelo que acabara de não acontecer. Quando se encontrava aí a uns quatro metros de Boris, talvez três, atirou-lhe um chinelo, vociferando:
-Tarado! Fora daqui, seu abusador de casais!
- ...
Boris desviou-se do chinelo e, voltando-se, viu-o já pousado na areia.
- Olhe, só mais uma coisa! – voltou-se de novo para o homem, que falava agora num tom mais suave. – Devolva-me lá o chinelo, se faz favor. Preciso dele!
Boris não respondeu. Não se mexeu. A sua face não esboçou qualquer expressão. O homem foi buscar o chinelo, acariciando-o como se se desculpasse pelo que lhe houvera feito, estendeu a mão à mulher, ela levantou-se e afastaram-se dali, de mão dada, e a mulher olhava de quando em vez para trás. Boris manteve-se imperturbável, pensando: “Ainda bem que o nome dele não é Lot, caso contrário a mulher já se teria transformado numa estátua de sal”. Depois deixou-se cair pesadamente na areia, pensando no que acabara de presenciar: afinal pensar era o que fazia de melhor, por assim dizer.
Dias depois, encontrou uma rapariga à beira-mar. Estava sozinha, a fumar um joint. Boris acercou-se dela e interpôs-se entre ela e o mar, fitando-a. Ela olhou-o também nos olhos, e por uns instantes ficaram em silêncio. Uma gaivota aterrou junto deles e estacou também. Boris perguntou-lhe o nome. A gaivota não respondeu; já a rapariga disse:
- Alf. O meu nome é Alf.
- Deveras? És a primeira Alf que conheço! É uma alcunha?
- Não – respondeu Alf, e o seu tom de voz denotava algum agastamento. – é mesmo o meu nome... Alf. – E expeliu com vagar o fumo da cavidade bucal. – Vai uma passa? – perguntou-lhe, estendendo o joint na sua direcção. Boris declinou com um movimento de mão.
- Que fazes por aqui, Alf, (pausa) para além de fumar uma ganza?
- Nada de especial. Gosto de estar à beira-mar. E tu? Como te chamas e o que fazes por aqui?
Boris apresentou-se e relatou-lhe a sua história recente. Alf começou a menear a cabeça, indiciando desagrado em relação ao que ouvia. E esse indício confirmou-se quando Boris terminou a sua alocução. Alf não assimilou muito bem as ideias de Boris; pelo contrário, o seu cérebro teve dificuldades em mastigá-las.
- Bolas, pá! – disse ela. – Quer-me parecer que não passas de mais um desses putos ricos e entediados que não sabe o que fazer à vida que têm, cheia de ócio e de abundância, e inventam todas essas tretas pseudo-espirituais, quando afinal apenas pretendem gozar umas férias!
- Alto aí! – ripostou Boris. – Eu não gozo as férias! Pelo contrário, levo-as muito a sério!
- Poupa-me, miúdo! Se reflectires por uns momentos, mas reflectires a sério sobre o que acabas de me dizer, isso parecer-te-á tão desprovido de sentido como a mim – disse Alf, esboçando um esgar tão pronunciado que parecia o Rui Veloso.
- Reflectir... como num espelho? – arrependeu-se de ter dito isto no instante em que estes sons tão estupidamente articulados foram de encontro aos ouvidos de Alf.
- Deixa lá, Bó – disse a rapariga, apagando finalmente o filtro no cinzeiro de praia que retirou da mochila. “Linda menina! Assim é que é!”, pensarão. – Não devia ter falado contigo neste tom irado.
- Não faz mal... – foi tudo o que Boris conseguiu dizer, numa voz sumida.
- Olha, vem cá. – Alf (melhor dizendo, a sua mão direita) pegou na mão de Boris, passou-lhe o indicador da mão livre pelo lóbulo da orelha, num gesto revelador de uma sensualidade que, de tão implícita que era, quase poderia ser considerada explícita. Mas Boris repeliu-a, ainda que suavemente, esboçando um sorriso triste. Ela agradava-lhe, apesar do nome, mas não pretendia envolver-se mais intimamente, uma vez que se havia elevado acima desses banais frémitos que comandam, quais déspotas obscurecidos, os sentidos de homem comum e lhes toldam a clarividência, assim pensava Boris.
Ela levantou-se, afastou-se um pouco dele e então olharam-se longamente. Ele disse:
- Depois de tanto tempo aqui, aprendi a escutar o mar, as ondas, o vento... o mar contém em si todas as vozes deste mundo, se o olhares atentamente verás todos os rostos, o passado, presente e futuro fundidos neste preciso momento, que são todos os momentos afinal. No mar está a unidade do Cosmos, e vou fundir-me nela.
Enquanto isso, a rapariga sorria, pensando: “Para que deixei que este freak conversasse comigo? Agora já fala em fundir-se na água do mar... Será que não me vai deixar sair daqui?”
Mas Boris acalmou as suas inquietações com estas palavras:
- Vai em paz.
Ela assim o fez, arrastando os pés na areia, sem olhar para trás. Boris ficou a vê-la afastar-se, até não conseguir perscrutar mais que um ponto em movimento no horizonte. Então voltou-se na direcção do mar.
Respirou fundo, sentindo que chegara a sua hora. Dirigiu-se à zona de rebentação, caminhando lentamente, tropeçando nas ondas da maré cheia, num êxtase tranquilo que nunca antes havia experimentado. “Vou mergulhar na unidade, fazer parte da evolução do mundo, vou transformar-me em criatura marinha, se o homem evoluiu a partir do peixe e sei que sim, vi isso num videoclip do Fatboy Slim, agora vai ser ao contrário”, e estes pensamentos cruzavam a sua mente, não respeitando sequer as regras da prioridade, num turbilhão de sensações a que não se esforçava por resistir. E mergulhou totalmente no mar bravio.
Já não sabia se estava consciente, mas abria os olhos e via maravilhado a luz do sol cada vez mais longe, e depois fechava os olhos e essa luz permanecia, e não sabia se tinha os olhos abertos ou não, se respirava ou não, se se afundava ou se vogava ao sabor das correntes. Estaria ainda consciente? Imaginava-se já no fundo do mar a contemplar o Universo com os olhos fascinados numa felicidade de criança, como o robotcriança do “Inteligência Artificial" quando contemplava a estátua que tomava por mãe.
Acabara de ser tornar um de nós.
Radiohead - Pyramid Song
(ver aqui a letra)
De entre os episódios caricatos que ocorreram a Boris nessa altura, destaco - pelo picotado - o encontro que teve com um casal, ambos na casa dos quarenta anos, que em plena duna se preparavam para cumprir os seus deveres conjugais - expressão pouco conseguida, como se a cópula fosse uma obrigação, “deveres” era o nome que antigamente se dava aos trabalhos de casa da escola, ouvisse falar em deveres conjugais há uns anos atrás e torceria decerto o nariz, pois detestava ter de conjugar os verbos em casa, e os meus pais que não me compraram uma gramática... preparava-se então o casal para as vias de facto, enlaçados, e eis que surge perante eles Boris, desnudado, cabelo desgrenhado, pele tisnada pelo Sol (pois o que mais poderia tisnar a pele por aquelas paragens?)
- Que fazes aqui? – disse o homem, algo amedrontado, depois de a mulher ter soltado um grito.
- Vagueio pela praia, medito, jejuo.
- Mas não devias estar aqui! Não tens um pingo de decoro? - fez uma pausa, aguardando resposta - Nem um?
-Não deixem que a minha presença vos intimide. Não vos olho numa perspectiva puramente sexual, estou acima disso! Entendo o vosso acto como uma comunhão entre os dois e com todo o universo!
Mas o casal não aceitou o seu ponto de vista. Enquanto a mulher permanecia deitada na duna, visivelmente constrangida, o homem levantou-se com um salto para trás e deu de seguida três saltos para a frente – vale isto por dizer que se aproximou de Boris. Tinha as faces enrubescidas, não só pelo que acabara de acontecer mas principalmente pelo que acabara de não acontecer. Quando se encontrava aí a uns quatro metros de Boris, talvez três, atirou-lhe um chinelo, vociferando:
-Tarado! Fora daqui, seu abusador de casais!
- ...
Boris desviou-se do chinelo e, voltando-se, viu-o já pousado na areia.
- Olhe, só mais uma coisa! – voltou-se de novo para o homem, que falava agora num tom mais suave. – Devolva-me lá o chinelo, se faz favor. Preciso dele!
Boris não respondeu. Não se mexeu. A sua face não esboçou qualquer expressão. O homem foi buscar o chinelo, acariciando-o como se se desculpasse pelo que lhe houvera feito, estendeu a mão à mulher, ela levantou-se e afastaram-se dali, de mão dada, e a mulher olhava de quando em vez para trás. Boris manteve-se imperturbável, pensando: “Ainda bem que o nome dele não é Lot, caso contrário a mulher já se teria transformado numa estátua de sal”. Depois deixou-se cair pesadamente na areia, pensando no que acabara de presenciar: afinal pensar era o que fazia de melhor, por assim dizer.
Dias depois, encontrou uma rapariga à beira-mar. Estava sozinha, a fumar um joint. Boris acercou-se dela e interpôs-se entre ela e o mar, fitando-a. Ela olhou-o também nos olhos, e por uns instantes ficaram em silêncio. Uma gaivota aterrou junto deles e estacou também. Boris perguntou-lhe o nome. A gaivota não respondeu; já a rapariga disse:
- Alf. O meu nome é Alf.
- Deveras? És a primeira Alf que conheço! É uma alcunha?
- Não – respondeu Alf, e o seu tom de voz denotava algum agastamento. – é mesmo o meu nome... Alf. – E expeliu com vagar o fumo da cavidade bucal. – Vai uma passa? – perguntou-lhe, estendendo o joint na sua direcção. Boris declinou com um movimento de mão.
- Que fazes por aqui, Alf, (pausa) para além de fumar uma ganza?
- Nada de especial. Gosto de estar à beira-mar. E tu? Como te chamas e o que fazes por aqui?
Boris apresentou-se e relatou-lhe a sua história recente. Alf começou a menear a cabeça, indiciando desagrado em relação ao que ouvia. E esse indício confirmou-se quando Boris terminou a sua alocução. Alf não assimilou muito bem as ideias de Boris; pelo contrário, o seu cérebro teve dificuldades em mastigá-las.
- Bolas, pá! – disse ela. – Quer-me parecer que não passas de mais um desses putos ricos e entediados que não sabe o que fazer à vida que têm, cheia de ócio e de abundância, e inventam todas essas tretas pseudo-espirituais, quando afinal apenas pretendem gozar umas férias!
- Alto aí! – ripostou Boris. – Eu não gozo as férias! Pelo contrário, levo-as muito a sério!
- Poupa-me, miúdo! Se reflectires por uns momentos, mas reflectires a sério sobre o que acabas de me dizer, isso parecer-te-á tão desprovido de sentido como a mim – disse Alf, esboçando um esgar tão pronunciado que parecia o Rui Veloso.
- Reflectir... como num espelho? – arrependeu-se de ter dito isto no instante em que estes sons tão estupidamente articulados foram de encontro aos ouvidos de Alf.
- Deixa lá, Bó – disse a rapariga, apagando finalmente o filtro no cinzeiro de praia que retirou da mochila. “Linda menina! Assim é que é!”, pensarão. – Não devia ter falado contigo neste tom irado.
- Não faz mal... – foi tudo o que Boris conseguiu dizer, numa voz sumida.
- Olha, vem cá. – Alf (melhor dizendo, a sua mão direita) pegou na mão de Boris, passou-lhe o indicador da mão livre pelo lóbulo da orelha, num gesto revelador de uma sensualidade que, de tão implícita que era, quase poderia ser considerada explícita. Mas Boris repeliu-a, ainda que suavemente, esboçando um sorriso triste. Ela agradava-lhe, apesar do nome, mas não pretendia envolver-se mais intimamente, uma vez que se havia elevado acima desses banais frémitos que comandam, quais déspotas obscurecidos, os sentidos de homem comum e lhes toldam a clarividência, assim pensava Boris.
Ela levantou-se, afastou-se um pouco dele e então olharam-se longamente. Ele disse:
- Depois de tanto tempo aqui, aprendi a escutar o mar, as ondas, o vento... o mar contém em si todas as vozes deste mundo, se o olhares atentamente verás todos os rostos, o passado, presente e futuro fundidos neste preciso momento, que são todos os momentos afinal. No mar está a unidade do Cosmos, e vou fundir-me nela.
Enquanto isso, a rapariga sorria, pensando: “Para que deixei que este freak conversasse comigo? Agora já fala em fundir-se na água do mar... Será que não me vai deixar sair daqui?”
Mas Boris acalmou as suas inquietações com estas palavras:
- Vai em paz.
Ela assim o fez, arrastando os pés na areia, sem olhar para trás. Boris ficou a vê-la afastar-se, até não conseguir perscrutar mais que um ponto em movimento no horizonte. Então voltou-se na direcção do mar.
Respirou fundo, sentindo que chegara a sua hora. Dirigiu-se à zona de rebentação, caminhando lentamente, tropeçando nas ondas da maré cheia, num êxtase tranquilo que nunca antes havia experimentado. “Vou mergulhar na unidade, fazer parte da evolução do mundo, vou transformar-me em criatura marinha, se o homem evoluiu a partir do peixe e sei que sim, vi isso num videoclip do Fatboy Slim, agora vai ser ao contrário”, e estes pensamentos cruzavam a sua mente, não respeitando sequer as regras da prioridade, num turbilhão de sensações a que não se esforçava por resistir. E mergulhou totalmente no mar bravio.
Já não sabia se estava consciente, mas abria os olhos e via maravilhado a luz do sol cada vez mais longe, e depois fechava os olhos e essa luz permanecia, e não sabia se tinha os olhos abertos ou não, se respirava ou não, se se afundava ou se vogava ao sabor das correntes. Estaria ainda consciente? Imaginava-se já no fundo do mar a contemplar o Universo com os olhos fascinados numa felicidade de criança, como o robotcriança do “Inteligência Artificial" quando contemplava a estátua que tomava por mãe.
Acabara de ser tornar um de nós.
Radiohead - Pyramid Song
(ver aqui a letra)
3 Comments:
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Estória fenomenal.
Uma opinião para o Língua Morta. Devias ao longo das estórias dar opções diferentes. Depois as pessoas telefonavam (ainda ganhavas uns trocos ) e escolhiam, tipo Agora Escolha. Por exemplo, quando falas de um chinelo podes dar a opcção A)havaianas, B) chinelos de piscina, C) chinelos de quarto. Porque depois estas escolhas vão influenciar profundamente o rumo da estória. Faz ver...
Lestejia toda?
E falas em ganhar uns trocos, dizes tu? Com o ror de gente a ler este blogue... seriam mesmo trocos.
Ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah.
Enviar um comentário
<< Home