A busca de Boris - 1ª parte
Foi depois de terminar a leitura de “Siddhartha – um poema indiano” que um sentimento de vaga inquietação perpassou a mente de Boris. Sentiu que precisava de mudar de vida, deixar a casa onde sempre vivera e tentar encontrar o significado da sua existência através da percepção da plenitude do Universo. Isto foi o que pensou, apesar de não saber a certo no que consistia esse impulso. Tentou reflectir: não era feliz, mas não era infeliz. Não era rebelde, nem conformado. Para mais, o seu raciocínio também não o deixava alongar-se muito em tais cogitações.
Falou primeiro com o pai. Entrou no escritório sem bater à porta e ficou de pé, com um sorriso vago, até que o pai se apercebeu da sua presença, voltando o olhar na sua direcção.
- Tomei a resolução de empreender uma jornada em busca do conhecimento de mim próprio, do meu Eu pleno.
- Muito bem – assentiu o pai, falando pausadamente. - E quanto tempo prevês que te tomará tal jornada?
- O tempo que for necessário para que possa perceber o universo com um olhar de criança.
- Que quer isso dizer?
- Quero ver as coisas sem as julgar. Quero fruir tudo o que me rodeia e sentir que tudo faz parte do mundo, tudo tem o seu papel, como as crianças que brincam com tudo o que lhes apetece e atribuem a cada objecto um papel sem pensarem porque o fazem. Lembras-te do filme do Wenders? “Quando a criança era criança, ainda não sabia que era criança”. Algo me impele a sair por aí, para me libertar dos condicionalismos mundanos que me turvam a percepção das coisas.
“Mas turvam como?” - ia perguntar o pai. Contudo, não chegou a verbalizar tais dizeres; antes anuiu com a cabeça, e voltou a debruçar-se sobre o jornal.
Depois Boris foi despedir-se da mãe. Esta despedida foi mais breve.
- Vou sair de casa por uns tempos, mãe. Vou viajar sem rumo, em busca da felicidade de contemplar o mundo com olhos de criança.
Habituada às ausências mais ou menos prolongadas do filho, a mãe respondeu apressadamente:
- Vai lá, então. Tenho de terminar de arrumar estes dossiês.
- Agradeço-vos, meus pais, por me terem tornado no jovem cordato, inquiridor e insatisfeito na busca da verdade que hoje posso afirmar ser. Mas é precisamente essa demanda pela plenitude do meu Eu que me leva a deixar a vossa presença.
- Tudo bem, já te disse que podes ir. Vai telefonando de vez em quando, não faças como das outras vezes.
- A jornada será longa, não regressarei enquanto não tiver a certeza de me sentir parte....
- Podes ir, já disse! E cala-te antes que comece a espumar da boca!
Saiu sem levar sequer a mochila de campismo. Queria estar livre, o mais possível despojado das coisas que para ele representavam o mundo supérfluo, libertar-se do jugo do materialismo. E tais pensamentos provocaram-lhe um sorriso. Decidiu pôr-se à boleia junto à saída da via rápida. Meia hora depois lá surgiu um camião que parou lentamente junto dele. “Boa!” – pensou. “Os camionistas devem gostar de conversar, passam horas, dias, sozinhos ao volante.”
- Para onde vai? – perguntou o motorista, debruçando-se sobre a janela do lado oposto.
- Ainda não sei ao certo – respondeu.
- Bom, então entre! – disse o camionista, após alguns momentos de silêncio.
Assim fez o jovem, e o camião pôs-se em marcha. A conversa não tardou.
- Olha lá, andas a passear ao acaso ou aconteceu-te alguma coisa que não me contaste?
- Vou em busca do sublime. Pretendo alcançar a simbiose entre o meu Eu e o mundo.
- Tu deves é ter estado a fumar um charrito, não? Confessa! Comigo estás à vontade, também fumei alguns na tropa...
- Preciso de estar completamente puro, a salvo de tudo o que se situa na esfera do mundano. Só assim me poderei encontrar comigo mesmo.
- Então estás a fazer uma viagem espiritual, ou coisa que o valha, certo? Eu também me ponho muitas vezes a pensar em tudo e mais alguma coisa, enquanto calcorreio as estradas da Europa toda. E acho, – não sei o que pensas disto, são apenas coisas que me passam pela cabeça – quer-me parecer, dizia, que somos todos como a água dos rios, seguindo o nosso caminho ao longo da vida; não sei se somos guiados por alguém ou se andamos à deriva, mas é assim que entendo as coisas.
- Pois é precisamente isso que almejo! – entusiasmou-se o jovem, voltando-se para o motorista. – Uma osmose com o mundo inteiro! Esponjar-me em tudo o que me circunda! Olhar tudo sem ajuizar, sentir apenas!
- Isso para mim é um pouco difícil de perceber, rapaz.
- Experimentar tudo! Não renegar as sensações! Eu, você, este camião, a estrada, a paisagem, tudo faz parte da máquina que é o Universo!
- Alto aí, jovem! Parece que começo a perceber o que realmente pretendes!
- Ainda bem que partilha dos meus pensamentos...
- Nada disso, pá! Com esse galreamento todo... tu já vinhas com ela fisgada! Mas olha que não sou burro nenhum!
- Agora sou eu quem não compreende...
- Pois sim! A fazer-se de novas! ´tá bem abelha! Olha, vamos fazer uma coisa, antes que me chateie a sério: a conversa acaba aqui, e na próxima área de serviço levantas daqui o rabo e vais tentar enganar outro papalvo!
- Estes tipos não têm mesmo vergonha! – rosnou entredentes, enquanto revirava os olhos por trás das redondas lentes dos óculos escuros.
Dito e feito, o nosso viajante foi deixado, sem uma palavra, na área de serviço onde o camionista parou para jantar. Mas a história de Boris não poderia terminar neste ponto... a sua jornada mal começara.
(continua)
a preguiça é quem mais ordena
5 Comments:
Entao a preguica e que mais ordena!!!
um abraco.
oi amigo....
para te complementar nessa jornada de interiorização do Eu, aconselho-te a leitura do livro: O senhor Imbrahim e as flores do Corão, de Eric-Emmanuel Schmmitt, edições ambar...
é verdade o que escreveste...mas eu reconheço que não estou entre os melhores, mas para lá caminharei....e, já agora, dá-me os nomes dos teus the best. O Lorenzetti é, para mim EXCELENTE, a Barriga do Arquitecto, Muito Bom....
abraço amigo e aqui, deixo, a minha marca de Alfa...
RPM
Desculpa, rpm, pelo que disse do teu blogue. Não te quis ofender, nem aos leitores /comentadores do blog, mas a verdade é que me faltou a polidez.
O que é a vergonha?
SIddhartha é uma boa leitura Boris
A Mata Hari é agora somente a bel.
Boris era um cão pastor alemão que ladrava violentamente quando o seu dono (leia-se "Ti Jorge") o fustigava com um ramo seco de laranjeira encontrado algures no quintal.
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