29 de janeiro de 2006

A hérnia de Alberto

- Uma hérnia inguinal? Nada de grave, portanto... certo? - assim reagiu Alberto ao diagnóstico do seu médico de família. Este aquiesceu:
- Sim, isto dever-se-á a um qualquer esforço, provavelmente no ginásio; é pequena e será retirada numa intervenção rápida.

Três meses depois, Alberto deu entrada no hospital local para a intervenção. Optou pelo final de Junho para a operação, pois assim esquivava-se à azáfama que naquela altura se apoderava da agência de viagens onde trabalhava. Estava tão bem-disposto que até gracejou com o médico-anestesista quando este lhe perguntou se estaria disposto a colaborar num estudo sobre os efeitos da administração de Prozac no bloco operatório.
- Far-lhe-ei apenas algumas perguntas predefinidas.
- Veja lá, doutor, não se aproveite de mim para questões indiscretas! - O anestesista esboçou um sorriso forçado. No dia seguinte, Alberto pediu para que lhe guardassem a hérnia.
- Só por curiosidade, pode ser?
Desejou a si próprio "bons sonhos" em voz alta; pouco depois ficou inconsciente.

A meio da tarde, foi visto pela equipa de cirurgiões.
- Afinal foi um pouco mais difícil do que esperámos, sabe senhor Alberto? A hérnia não queria sair, fez-se difícil! - gracejou a cirurgiã-chefe.
- Foi difícil de remover?
-Não, a hérnia não queria literalmente abandoná-lo. Tivemos de mandar chamar a equipa de psicólogos do hospital, para dialogarem com ela e tentar convencê-la de que deixá-lo era de facto o melhor caminho.
- Mas ela manteve-se irredutível! Dizia sentir-se muito bem no seu canal intestinal. - prosseguiu outro dos médicos. - Tivemos de recorrer a uma técnica que raramente pomos em prática, a hipnose.
- Hipnotizaram a hérnia para que ela saísse? - indagou Alberto, cada vez com maior curiosidade. Tudo aquilo era novo aos seus ouvidos.
- Sim, teve de ser assim. Mas correu tudo bem, pode estar tranquilo quanto a isso.

De seguida os médicos observaram Alberto e informaram-no de que teria alta daí a dois dias. Quando se preparavam para abandonar a enfermaria, Alberto pediu timidamente:
- Posso... poderia ver a hérnia que me retiraram?
- Ah, com certeza! - disse a enfermeira. E passou-lhe uma caixa de plástico transparente. Observou-a com toda a atenção - era pouco maior que uma amêndoa; depois devolveu-a, num gesto solene, à enfermeira.

Confirmando as previsões dos médicos, Alberto regressou a casa dois dias depois. Mas, apesar de conseguir caminhar, ainda que com algumas precauções iniciais (chegou mesmo a conduzir nesse mesmo dia, desobedecendo a ordens médicas!), não se sentia o mesmo. Apalpava constantemente a região donde lhe tinham retirado a incómoda protuberância e soluçava. Algo o afligia. Alguma coisa poderia não ter corrido bem? Em casa, recusava-se a comer e respondia com breves e mal-humorados monossílabos às diligentes perguntas que a mulher lhe fazia. Andava cabisbaixo e esquivo.

No Sábado à tarde, foi passear para o centro comercial. Vagueou por todas as lojas, admirando algumas montras e lançando olhares furtivos aos casais com bebés que com ele se cruzavam. Maquinalmente, saíu do shopping e dirigiu-se ao hospital. Esperou alguns minutos pela chegada do horário das visitas e entrou pelo serviço de cirurgia adentro. Foi ao gabinete das enfermeiras. - Faz favor! Olhe, faça favor!
- Sim? - voltou-se uma delas. - Precisa de ajuda?

- Sim, eu... - balbuciou. - Estive aqui na semana passada, para me removerem uma hérnia inguinal...
- E então, teve algum problema? Sente-se bem?
Envergonhado por fazê-lo na presença de uma mulher, Alberto desatou a soluçar. Apoiou-se nas costas de uma cadeira e rompeu então num pranto entrecortado por palavras desconexas.
- Sinto-me tão vazio desde que ela me deixou!
- Ah, o senhor separou-se da sua mulher? Lamento...
- Não é isso! Falo da hérnia! Gostava tanto de sentir o seu pulsar! Já fazia parte de mim... E agora sinto falta dela...

A enfermeira respirou fundo. Não estava preparada para aqueles dizeres. E Alberto prosseguiu, agora mais calmo:
- Sabe, eu e a minha mulher ainda não conseguimos ter filhos. Começo a pensar que nunca o conseguiremos...
- Mas que tem uma coisa a ver com a outra? - perguntou, incrédula, a enfermeira.
- Ter aquela hérnia foi o mais próximo que estive da sensação de paternidade... e agora ela foi-me arrancada! Já estava habituado a ela, foram tantos meses... Não estava preparado para isto que me aconteceu! Não sei que fazer... - e recomeçou a chorar convulsivamente.

A enfermeira chamou discretamente dois colegas.
- Levem este senhor daqui. - sussurrou. - Ele não está bem, conduzam-no ao gabinete do psicólogo de serviço. Dirigiu-se a Alberto e pôs-lhe a mão sobre o ombro.
- Olhe, diga-me só o seu nome, sim?
- Alberto - respondeu a fungar.
- Senhor Alberto, queira acompanhar estes senhores enfermeiros. Eles vão tentar resolver o seu problema, está bem?
- Obrigado, menina! Muito agradecido! - disse, limpando as lágrimas e o ranho ao toalhete que lhe tinham oferecido. Voltou-se depois para os enfermeiros:
- Os senhores vão implantar-me outra hérnia, não vão?
E, ajeitando o colarinho, esboçou um largo sorriso, tal era agora o seu contentamento.

8 Comments:

Blogger Bel usou da palavra

As crianças também nascem e se libertam tal como a hernia! Eu sou de opinião que hernia que é hernia deve libertar-se.

29 janeiro, 2006 17:05  
Blogger Aladdin Sane usou da palavra

sim, deverá saír pelo próprio pé!

29 janeiro, 2006 17:56  
Blogger Aladdin Sane usou da palavra

Mata Hari (aka spyware), se voltares a ler a história notarás uma pequena diferença. Go, go, go!

29 janeiro, 2006 18:10  
Blogger Aladdin Sane usou da palavra

micróbio malévolo!!! ;-)

29 janeiro, 2006 19:15  
Blogger Bel usou da palavra

Gostei da alteração! O que nos incomoda na maioria das vezes teima em permanecer e nos teimamos em não a deixar ir embora.
Cada um tem direito à sua pequena amendoa.Apesar de eu hoje e talvez só hoje dispensar a minha parte.

29 janeiro, 2006 21:05  
Anonymous Anónimo usou da palavra

A Hérnia da angústia!
É apenas o aparecer de uma coisa que se chama vida!
Os Hernianos vagueiam na multidão,
rezam, ajoelham e caem desamparados pelas preces inaudíveis. A acústica das igrejas já não é o que era! E a culpa é dos paupérrimos de espírito, sem tostão, que deixam as moedas à porta da inacústica mansão dos negócios diabólicos!

30 janeiro, 2006 16:02  
Blogger JL usou da palavra

É condição do ser humano ser avesso à mudança. Por outro lado só reconhecemos o valor das coisas quando as perdemos. Talvez estas sejam duas conclusões possíveis desta estória :-)

30 janeiro, 2006 17:53  
Blogger Aladdin Sane usou da palavra

Quando tiver uma hérnia vou chamá-la Hernilla, por motivos óbvios. Ou então, à guisa de homenagem à Ciência, fica Copérnica...

31 janeiro, 2006 00:51  

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