17 de janeiro de 2006

Linda Carlota

Linda saiu de casa nessa fragorosa manhã de Sábado sem se despedir da sua irmã; mas tal não era necessário, pois Carlota já sabia que Linda ia dar o seu passeio habitual de bicicleta pelas ruas do bairro.

Mas, quinze minutos após a saída de Linda, a leitura de Carlota foi interrompida pelo soar do telefone. Algo contrafeita, a jovem dirigiu-se ao hall de entrada; ia fazer meia-volta, revirando os olhos ao reparar que a mãe já estava a atender a chamada, mas interrompeu o movimento quando notou que a mãe acabava de deixar cair o bocal e abafava um grito com as duas mãos. Carlota apressou-se a amparar a mãe, perguntando-lhe o que se passava. Titubeante, esta disse-lhe, de forma entrecortada: “É da Polícia... a Lili foi... atropelada... no cruzamento... Filha, a Linda morreu!” Dirigiu a Carlota um olhar de súplica enquanto proferia estas últimas palavras. E ficaram abraçadas, a soluçar, durante muito tempo, como que assimilando lentamente a notícia que acabava de lhes ser transmitida.

No funeral de Linda (filha mais velha de um casal recentemente separado), Carlota parecia tomada por uma apatia perante o que estava a acontecer. Ainda não aceitara totalmente a perda da irmã. Mais, não conseguia conceber a ideia que Lili visse a sua existência ceifada aos dezassete anos. Entre vários tumultuosos pensamentos, sentiu-se momentaneamente satisfeita por voltar a ver os seus pais de novo juntos. Abraçada a Cláudia, a sua melhor amiga, sentiu um torpor nas pernas; sentou-se no pequeno degrau que limitava o corredor central do cemitério, do portão até à minúscula capela. Ignorando os olhares lançados pelas outras pessoas, Cláudia juntou-se a ela.

“Sabes?” pronunciou Carlota num tom distante, como se lhe custasse falar, “Começo a achar que os cemitérios deviam ter uma câmara junto à entrada, onde as pessoas falariam, apresentando-se e deixando a sua mensagem de sentidas condolências, que nós veríamos mais tarde. Assim não teriam de incomodar-nos com estas conversas tão deprimentes... que a morte faz parte da vida já sabia, que não somos nada... que tenho de ser forte... uma mulher que nunca vi até me perguntou idade! Que falta de originalidade, não achas? E aquelas expressões patéticas de pena...” Cláudia não lhe respondeu – nem sabia como o fazer. Olhou-a, tentando descodificar a expressão da amiga enlutada. Finalmente, abraçou-a e ouviu-a soluçar baixinho.

Os dias seguintes foram penosos em casa da família (uma vez mais) desfeita. O pai de Carlota visitava-as todos os dias, mas não se delongava muito por lá, e as conversas com a ex-mulher terminavam muitas vezes em discussões. Carlota sentia o ambiente pesado que parecia tomar conta até de todos os objectos na casa. Entristecia-a pensar que os pais, ao contrário do que intimamente desejava, não voltariam a viver juntos, e por isso tentava passar o menos tempo possível em casa. Duas semanas depois, enquanto enxaguava a loiça que a mãe lavara, Carlota deixou cair um prato e desatou a soluçar, olhando os cacos. “Sabes, mãe? Sinto tanto a falta da Lili...” A mãe acercou-se dela. “Eu também, filha. Eu também...” E, abraçando-a, chorou convulsivamente nos seus ombros. Mas daquela vez, Carlota não chorou; reparou antes na mancha que as lágrimas de sua mãe lhe deixavam na T-shirt. Apercebera-se que, por mais que tentasse, nunca conseguiria consolar a mãe pela perda de Linda. E uma ideia começou a tomar forma na sua cabeça.

No dia seguinte, levantou-se bem cedo como de costume, mas os seus passos não a conduziram à paragem do autocarro. Tinha decidido faltar à escola nesse dia. Foi até ao cruzamento onde Linda tinha perdido a vida. Era um lugar perigoso, onde muitos automobilistas aceleravam em demasia para evitar o sinal vermelho de controlo de velocidade. Inúmeros acidentes ali tinham ocorrido, especialmente depois das obras de repavimentação, que tornaram mais estreitas as faixas de rodagem. Carlota deteve-se ali por alguns minutos; depois seguiu o seu caminho. Foi ao salão de beleza mais próximo, onde mandou que lhe cortassem o cabelo bem curto e o pintassem dum tom castanho-claro, ou “cor de trigo”, como o pai costumava dizer.

Quando voltou a casa à hora de almoço, verificou satisfeita que a mãe não se tinha apercebido da sua entrada em casa. Foi à cómoda de mogno e tirou de lá as roupas que vestiu. De seguida mirou-se em frente ao espelho e pegou numa das fotografias que estava no quarto onde não entrava há vários dias. Sim, era Linda quem havia regressado a casa. “A mãe vai ficar tão contente com o meu regresso!”, pensou. Carlota tinha deixado de existir. Penteada, vestida e maquilhada como a sua irmã, tornara-se agora nela. Conseguia até fazer aquele trejeito facial de Linda que fazia o pai sorrir, em que a covinha do queixo parecia mexer-se sozinha. E, respirando fundo, Linda foi procurar a mãe.

Encontrou-a no jardim, junto ao estendal. “Mã-ãe, voltei!” Quando a sua mãe se voltou, ficou petrificada, sem conseguir pronunciar palavra. “Sou eu, a Lili! Voltei a casa, finalmente! Não estás contente pelo meu regresso? Oh mãe, abraça-me! Tive tantas saudades tuas! Custou-me tanto estar fora!” Correu para a mãe de braços abertos, mas esta repeliu-a com um soco e afastou-se rapidamente, sem uma palavra. “Que estranho! Que se terá passado na minha ausência?”, disse Linda entredentes, passando os dedos da mão pelo maxilar dorido.

Ainda confusa, Linda dirigiu-se à garagem, pegou na bicicleta azul e foi até à rua. Passou pelas vizinhas que a olhavam fixamente sem reparar nelas. Pedalou cada vez com mais força, até lhe doerem os músculos das pernas, a respiração ofegante, as faces rosadas apesar da maquilhagem. Chegada ao cruzamento, parou, respirou fundo, olhou o azul do céu, fechou os olhos para melhor sentir o ar fresco da Primavera, e sorriu. Reabriu os olhos, montou a bicicleta e atirou-se para debaixo do autocarro que passava naquele instante no cruzamento.

5 Comments:

Blogger Bel usou da palavra

Por mais miserável que um ser humano seja nunca poderá ser substituido!

18 janeiro, 2006 22:21  
Blogger Aladdin Sane usou da palavra

Bom augúrio é chegar a um blog e ouvir "Venus In Furs"! Vai aonde te trava a demência!

19 janeiro, 2006 13:03  
Blogger Aladdin Sane usou da palavra

"Agora" que falas nisso, Mata Hari, há dois meses os meus pais chamaram-me de parte e contaram-me que eu vim da linha de montagem de uma oficina... Sou uma peça substituída... Foi uma história bem triste, acabámos todos agarrados em lancinante choro e ranger de dentes...

Se fosses um software serias um spyware!

21 janeiro, 2006 02:41  
Anonymous Anónimo usou da palavra

Por mais que me sinta abatido e triste, como hoje... tenho sempre alguém a quem chorar as minhas penas, vós amigos!
Amigo é aquele que está lá sempre!

24 janeiro, 2006 20:09  
Blogger Aladdin Sane usou da palavra

Grrrrrrrrrrr o deusdamaquina... mas tu não estás lá sempre!!!! Lá nos "contribuintes"! Há novidades?

Hugs, ou em português Uga! (vem aí a patrulha!)

25 janeiro, 2006 18:56  

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