30 de janeiro de 2011

A Utopia

Na mesa, os livros e as utopias.
No quarto dormente, o lume brando
afugenta o frio exterior.

Estou só, na medida do possível.
Posso e quero. Mas só
faço o que quero.

Escreve-se pouco na cama dos amantes insurrectos. Macero a agonia em limões sem fim.
Na acidez das palavras, o gosto doce da saudade. Rio-me dos esconjuros da infâmia.

Nas horas mortas, a minha finitude. Um soez, à espera de ti, miséria. Nas marionetas
da vida, a minha torpe inquietude. Quero a combustão do mundo.
E os livros ainda por queimar no meu leito desabrido.

Tudo em redor está num caótico frémito de esperança. As calças sobre a camisola
e no espelho quebrado, livros em ascensão vertical. Um dia começo a ler para
ser inteligente. Ou pelo menos, eloquente.
Por agora, apenas louco, neste quente quarto. O aquecedor irradia dióxido de carbono.
À falta de arma, tenho a inalação tóxica mais certa do que a vida.

Penduro os ouvidos na chapelaria mais distante. Do dislate se faz a minha prosa
porosa. Com rugas fartas na agonia do momento. Do presente se faz o sal na
pálpebra carcomida. Se eu fizesse sentido, seria sinaleiro das minhas acções.

Por isso, perambulo. Construo grumos na sopa mais anquilosante e fria.
Mas ponho hortelã nos silêncios e orégãos nos sentidos.
Já produzi sonhos feitos de manjericão e outras sopas mais saborosas.
Um dia ofereço-te as receitas para a minha solidão.
Até lá, pego n' A Utopia e atiro-o à fogueira das vaidades.

O crepitar da vida em prantos sem fim.
Quero o que não posso.
Mas só, faço o que quero.

24 de janeiro de 2011

Tracinho Decrescente

Do marasmo e da inocência, vítimas doces do dislate. Os cidadãos ficam em casa no sono
temporal do enevoado. Dom Sebastião na esfera dos inermes. Mais um cacto na seiva
dos anódinos votantes do caso sério. Um monte de rigidez que não aprecia jornais.

Noutras vias, o luar que vai minguando nos dias pouco-a-pouco crescentes.
Fevereiro está aí à porta, o mês da Febre Inglesa. A Ferver de não te ver.
Depois, a magnólia que trazias no rosto. Com a tua febre de vida num
sorriso recalcitrante. A alegria no teu rosto, as mãos suaves em
heresias sem fim. Depois, a comunhão de esforços na caminhada.
Um voto a mais no coração dos pobres patafísicos da utopia.

E na estrada que começa agora, uma velocidade suave e
prazenteira, sem buracos nem curvas perigosas.
Apenas o gosto de percorrer as vias principais
da paixão e do desejo. Se a coisa mais séria
da vida é a alegria, quero-te, séria e
profundamente densa e bela.
Como TU.

19 de janeiro de 2011

Escrevemos no mesmo dia dos abraços

Escrevemos no mesmo dia dos abraços
No convés da utopia, uma pétala de cravo

As tuas faces rubras de desejo e morte
Partiste no dique dos amantes dulcíssimos

Boca de fogo na cratera do silêncio
Vozes em surdina na passagem-de-nível

Almejaste o coração de pedra no
nevoeiro esquálido dos defuntos

Ossos e arenitos na campa adunca
Estrepitosa carruagem em que circulas

De volta aos abraços fecundos
Na gare dos saudosos sorrisos

No teu lívido rosto de pulsão vital
O beijo feérico na via salgada do amor

15 de janeiro de 2011

Um Selvagem ao Piano

Indecifrável a safra do tempo
Dói-me a íris de tanto sangue pisado
Calcorreei matos e escondi-me nas searas
O fuzil era a única salvação do corpo exangue

Na baioneta dos escombros, a madressilva
Pianos ínfimos prolongam a ânsia do vento
Há um rumorejar de ossos no baú dos esquisitos
Estiola-me a pele de tanto sal e sol no rosto

Bafiento, o lume. Pedras em volta da fogueira
Uma sagaz vaidade de perder-me nu na enseada
E os peixes nadam à tona das ondas em busca de ti

Exalo o hálito dos navegantes perdidos na ilha
estou deserto por te encontrar, nuvem andrajosa
e cuspidora de bátegas tépidas na minha boca dispersa

13 de janeiro de 2011

A Espera

A besta.
Era um punhal de vozes dissonantes.

A musa incrustada nas nuvens.
A hóstia desassombrada da dúvida.

No retinir das velhas chaves
a presença do metrónomo.

Um dolente espaço
na tabuleta do mundo.

O terço.
Nas matinas vilipendiosas
a obscura face de deus.

A tenaz carcomida em fúria.
Os umbrais enviesados de desejo.

A espera.
Cais de embarque dos sonhos.

11 de janeiro de 2011

Foi em Caneiro que te Conheci

Eu gosto da 'patafísica. Eu experimentei a putafísica.
No outro dia fui à Cloácia. Um habitante de lá é um Cloaca.
Cheirou-me mal, não sei de onde. Lavei a cara dentro de um bonde.
Ele era eléctrico e dava luz, um tipo ecléctico cheio de pus.
Perdi os óculos, não sei onde os pus. Truz-truz, bateram-me à cara!
Dei a outra porta para o amor. Sonhei com tino esta noitada.
O teu juízo ainda me agrada. Vivias em Santa Justa, o teu amor
ainda me assusta. Ele chegou no seu popó, deste-lhe um beijo
cheio de pó. Depois sentaram-se no para peito da minha janela.
Doeu-me um pouco, mas aguentei. Discutiam muito e lentamente.
Eu saí do quarto e andei pela casa contente. Foste o meu primeiro
amor, tu sabes quem és. Depois disso, tinham desaparecido.
Voltei ao quarto e fui à janela. Brinquei com o meu gato e tu com o teu.
Vivias em frente de mim, mas só neste sonho. E sorristes p'ra mim e
foste para dentro. Quando penso no teu badocha, vou à despensa.
Como bolachas e calço a galocha, mas apenas a da esquerda.
A direita tens tu, que sempre foste conservadora. Eu não m' importo.
De vez em quando ofereces-me umas conservas. Dás-me atum aos
corações e sardinhas aos montões. Eu como sou mais com versador,
dou-te um verso, com muito amor. Vou voltar à tua terra naval,
um sorriso no hospital. Foi assim esta ilusão, da peta física que me
criaste. Pó pota física, na com pota tísica. A química é um problema
para as ligações co' valentes. Pensei que me ias arrancar os dentes.
Dói-me o pisca-pisca dianteiro. A culpa é da pitafísica. Mas feliz
mente insidiosa da lágrima, fui à chave busca pólos e alcancei o
pólo centro da tua virtude. Deixei ir tud' a eito! O pisca ficou bom,
tudo perfeito. Está feito, disse para o meu limpa-pára-brisas.
Nas ondas do mar salobro, descobri um montado de sobro.
Foi com o meu carro desmontado que achei-te no carbura dor.
Estavas faminta do meu amor, mas apenas óleo tinha para te dar.
Ficaste Fula com a minha indagação. Cheirou-me a fritura de
reparação. Reparei que este sonho estava com somado. Deitei-me
de novo, desta vez para o lado. Vou sonhar mais um bom bocado!

6 de janeiro de 2011

As Palavras não nos Faltam, meu Amor

As palavras não nos faltam, meu amor.
É apanhá-las do ar, em turbilhões sem fim.
É juntar letra a letra nas minudências do mundo
a olorosa esperança dos navegantes solitários.

E depois, embarcar no sonho mais diáfano
da candura occipital do amor.