30 de dezembro de 2010

Os Limites do Mundo

Percebes agora o quão sensíveis são os limites do mundo?
A ribeira desagua no enorme rio dessa viagem intrépida
aos sentidos caudalosos do sonho. Deixei-me arrastar na
corrente dos afectos e sucumbi perante a barragem dos
homens sem amor. Que importa a energia gerada se não
há luz nos vossos corações? No entanto, as comportas
sempre podem abrir para as cheias da paixão humana.

E o silêncio com que me respondeste aos perigos da fogueira?
A festa era dos rapazes e não querias andar por aí a cantar
de galo. Pegaste na gaita-de-foles e obrigaste-me a dançar
nos contratempos da morte. O copo estava cheio e o meu
sangue escorreu pelo planalto altivo. Lá ao longe, os homens
cofiam as barbas no prazer das pedras que pisam. Os
pauliteiros já cirandam em poses ameaçadoras, mas tudo
não passa de uma encenação ritual e viril. Tu captas todo
este feérico espectáculo na tua câmara digital. São os teus
dedos que ora gravam memórias, ora deitam por terra
todas as fantasias que absorvo do teu corpo enviesado.

De tudo o que te disse, só ligaste ao carrossel diabólico
da telúrica geomorfologia da terra insone e isolada.
Tudo o mais foi desvario e evasão nas preces aflitas
com que te fitei e disse mansamente nas arribas:
Percebes agora o quão sensíveis são os limites do mundo?

26 de dezembro de 2010

Torrentes Inauditas

Diz-me: onde estão as aparências do olhar?
Em que geada mais ínfima encontraste a lua
na novidade inerme dos mortos?

Escuta-me.
Nas derivas problemáticas do instante
há fotografias roubadas no tecto da
tua insone inquietação.

Percebo os teus braços nus da luta mais
desigual dos amantes recicláveis. Um
oxímoro da vida anódina e fugaz.

Fala-me da murta e da turfa em epigramas
sem fim. Nos bolbos que te ofereci, apenas
um gerânio no gerúndio redondo do mar.

Deste-me um beijo no lábio leporino e eu
apresentei-te as vertigens do mundo. Corri
o silvado na esperança de rasgar as minhas
vestes suadas de memórias hedonistas.

Tocaste a ocarina com diáfanas melodias do
desejo inebriante. Uma silhueta de espuma
e um carcomido sonho lânguido de prazer.

Ouve-me:
que a noite perscrute o teu coração e dele faça
nuvens carregadas sem fim, para desaguares
amor sobre mim em torrentes inauditas.

21 de dezembro de 2010

Há Pessoas com Música Dentro

Há pessoas com música dentro de si.
Um rufo interior com melodias de amor.

Há pessoas que ressoam no seu corpo um
timbre límpido de uma felicidade tonal.

Entre a fruta e o legume, aquela mulher
sussurrava uma melopeia indefinida, mas
certa, no volume e na altura sonora.

Pouco sei dos ritmos do silêncio e das
esferas do sonho. Mas aquela música
estava na contradança perfeita do mundo.

E perto da mulher em suave maresia na salsugem dos dias,
mulher feérica e sapiente, enigma da erva e orégão aromático
deixei-me ficar, fitando-a no seu frugal abastecimento da vida.

Durante a minha estada naquele mercado, o perfume do
seu rumorejar interior perpassou na minha mente e
levei para o caminho esse breve suave toque de um canto.

Depois da viagem, regressado das vagas alterosas da fértil
imagem sentida, deparei-me diante de casa com um saco
cheio de fruta e erva-doce para a combustão dos sonhos.

Mulher da erva, som escandido na primavera dos afectos,
verdura impassível do seu suave canto na lassidão do dia.

8 de dezembro de 2010

Outo no Tempo

Placas de zinco a voar. Muros a desabar. Há chuva no inferno dos pobres.
As casas desabrigadas e os postes retorcidos. Devassidão na urze aromática.
Rios a transbordar, mares a inundar as cidades feitas de ruído e demasiados
erros humanos. A falta de inteligência, aliada à gulodice do dinheiro e poder,
matam tudo. Morte lenta ou rápida. A natureza faz sempre bem o serviço.
Mais fácil é rebentar com tudo o que é ínvio que a justiça humana actuar
a tempo. O tempo. O tempo passa e é instável, sol, chuva, vento, frio, calor.
Outono final como a primavera inicial. Sempre exageradas, sempre infiéis
para os que gostam do conservadorismo e da monotonia dos estatutos.
Continua assim, tempo, a mostrares toda a tua força bela e sagacidade.

1 de dezembro de 2010

Mãe-Aniversário

No menos certo de mim, eu sei que te servi, mãe.

Sempre fui aquele rapaz que ia à drogaria com a nota de 20 escudos para comprar
a lixívia com que lavavas os alvos lençóis, ou a acetona com que limpavas as unhas
destemperadas de cor. Ou na padaria, quando comprava aqueles papos-secos que
eu tanto gostava. E que cheirinho tinham. E os palmiers que eu comprava com os
5 escudos que o teu pai, o meu avô Peixe me dava. E quando ele me chamava com
a sua voz tonitruante para lanchar lá em baixo as suas torradas com azeite?
Ele com o seu dedo indicador espalhava o azeite pela torrada. E que sabor!
Que bela infância no seio de uma família maluca! Com risos e gritaria, gente doida
a viver na pobreza de uma felicidade inusitada. E agora, estou mais velho, mãe.

Hoje és tu quem celebras o diadema do mar salgado no estrepitar da vida. Mais
um ano de conquistas e derrotas, de vivências e experiências. E eu, sempre a
derivar na paisagem agreste. Sempre a fugir de ti, na esperança de me tornar
mais crescido. E quando eu andei a pedir-te a bicicleta nova? Aquela cromada,
com jantes amarelas, da Confersil? Tão bonita que era. E lá passei de ano e tive-a!
Anos mais tarde arrependi-me de te pedir estas coisas. Que custam caro, a que
ainda não dava valor, porque não sabia ainda o que era ter de gerir a vida e os
dinheiros. E os all-star que te pedi, vermelhos, lindos? Sou tão infiel e absurdo.
Devia ser mais humilde e recatado. Ser menos criativo e certinho. Vestir bem
e fazer a barba. Ser homem e não apenas um sobre vivente. Ter um emprego
mais confiável e estável, como diz o pai. O teatro, essa loucura em que me meti,
como o pai a desaprovou. Sim, como experiência, aventura. Não como vida, sonho,
utopia e dose maciça de loucura. Mas tu mãe, sempre disseste: - deixa-o fazer
o que ele quer! Tu tens essa inteligência que todas as mães têm. Saber respeitar
o espaço e o tempo do filho. Dar-lhe o ar e asas para voar. Mesmo sem o céu azul
da bonança. Ver-me soletrar as sílabas da vida em devaneios sem fim. Auscultar
a minha dúvida num compasso sempre certo e eficaz. Gostar de ti é amparar-me
nos teus braços, nas tuas palavras mesmo que irónicas ou subtis. Mesmo que na
mais despudorada palavra ou chamada de atenção para os atrevimentos do mundo.

Mãe, hoje és ainda mais sábia que toda a faculdade da vida. Mesmo com todas as
minhas leituras, os meus estudos e graduações, és e serás sempre a Mestra de
olho vivo ao percalços da ciência e da razão. A docente mais arreliadoramente
picuinhas e chata. Por isso és mãe e tens de aguentar as diatribes de um filho
sempre rebelde e muitas vezes incapaz de dizer que te amo. Custa tanto amar
e depois passar o resto dos dias a fingir que te odeio, a desvalorizar a tua educação.
Porque um filho tenta sempre matar o pai e a mãe, faz parte do percurso do
pássaro bisnau, sair da asa e dizer que está tudo errado o que nos foi ensinado
e aquilo que vivemos em família. Faz parte; a arrogância do filho é sempre algo
a que uma mãe tem de se sujeitar, mas no fim, no fim mãe, é de ti que preciso.
No dealbar desta história, és tu quem vence e me convence das heresias do filho
em crescimento lento para a tua idade, a da sageza do espírito e a beleza do olhar.

Por tudo isto, eu sei que vou continuar teu servo e fiel engulho que tens de receber
no teu colo, no teu acalorado braço forte e simplesmente sempre presente.
Sem olhar para trás. No navio de espelhos mais vivo de uma cotovia, a anunciar
o canto da primavera mais branda e serena nos teus olhos. Até já, mãe delicodoce.