27 de junho de 2009

Barbitúricos

Hoje escolhi o meu destino: Morrer às mãos de barbitúricos. Para fugir da real
idade do meu cérebro, da depressão que me condena ao suor dos destemidos.

Não há idade para a frivolidade, mas sim para o despertar dos sentidos. Agora,
sei que chegou a minha hora. Tal como Jean Seberg, actriz maravilhosa morta
por esses comprimidos dentro do seu carro, quero no meu velho Kadett de 1982
desaparecer para aparecer num outro sítio. Não deixo família, filhos e poucos amigos.

Nada de pernicioso, portanto. O mundo continua a resfolegar em fumo e calor,
sinal dos vivos que poluem em demasia este mundo sintético. Sinto-me acossado,
como no filme do Godard. Quero uma vespa para calcorrear as ruas de Paris, Milão,
Roma, Nápoles, Barcelona, Compostela, Porto e Lisboa. Tudo o mais é inodora paisagem.

E pronto, por hoje chega! Estou cansado. Padeço de prisão perpétua na morte.
Saio agora pela porta estreita, como sempre quis. Resta-me o reencontro com a vida.

24 de junho de 2009

Estou Morto e Arrefeço

Desta feita chegavas à Austrália. Estavas mais magra. Do outro lado do mundo,
nos antípodas, como dizem os que professam a sabedoria dos lugares vindouros,
chegavas plena de felicidade. Sempre em descoberta dos sentidos! Dás-me raiva
ao ver-te assim, desnuda e pueril! Depois, Nova Zelândia. Mas quando vais parar?

E eu aqui, bem longe, a ver os teus percursos, deambulações do eterno retorno.
Regressas sempre da vida, da avidez gastronómica dos sentidos. Deixo a pimenta
da Caiena e procuro o Caril dos desejos. Só as especiarias me dão alento à sedução.
Tudo o resto é vazio, sorte, acaso. Estou morto e arrefeço na tua rota de ida e volta.

19 de junho de 2009

Dissidência

E agora, que apareceste de surdina? No hemisfério esquerdo da noite, um
olhar, a memória afilada no infinito. Há um lado oculto que é teu, mas desfazes
tudo com os teus sorrisos e a vitalidade de uma criança bem inteligente.

És a criação, mesmo não sendo a do mundo, basta que ergas as cruzes no
altar da inquietação. Depois, sombras e nevoeiros, uma carta de despedida
e a comédia à la tarte. Depois da opípara filosofia dos termos e das conquistas,
partes rumo à Galateia, musa maior do mar. Sempre com vontade de amar!

Desta vez, há espaço para os conluios e as pausas, o mesmo é dizer as
afinidades selectivas de um mar salgado na profundeza da bruma. Mais que
discreta é a ausência de marés na melopeia infinita de um sonho mascavado.

Doçuras à parte, procuro os idiomas mais singulares na esfera restrita de
um caminho pejado de paixão. Pouco mais resta que a morte, nas divisas
ensanguentadas do poder atroz e missionário. São posições que o poder
defende, no âmbito mais persistente dos eventos de fim-de-tarde, à sombra.

Resta-me agradecer as palavras dirigidas, não a mim, mas a todos aqueles
que passaram por cima de mim, na ânsia desenfreada do sucesso a qualquer preço.
Entre os tostões da calçada e os milhões na parada, prefiro a flor, fina e delgada
do desejo nauseabundo. Sem esgotos nem saneamento básico para deslindar
os perfumes do tédio. Socorro-me agora da bússola avariada dos dias do futuro.

Depois do silêncio sacrossanto, a morte lenta em esgar febril. Na sinfonia suave
de um beijo em lá menor, ainda acrescento uma variação enigmática na melopeia.
Por ora é um bequadro no terceiro andamento de um verso, uma sílaba vivace
num andante sustenido. Párias audazes, fitas multicolores e a seiva a crescer.

Falo-vos do medo, a sedução do abismo na orla inaudível da razão. Licores e
promessas, eternas pedras que moem os ventos ao desafio. Tudo isto podia
fazer sentido, se a vida fosse humanamente uma dissidência dos sentidos.

16 de junho de 2009

E no entanto...

E no entanto desapareceu! No meio do comércio lisonjeiro que é a pátria,
um rasto de poeira foi deixado, indelével. Mas procuras em vão por essas
escadas ondulantes, para a salvação da tua alma. O resto é escroto, numa
bolsa alienada sem fim à vista. No prepúcio da vida, escalas o horror em
deambulações espúrias, metal e fontes carcomidas de desejo. Na eflúvia
estação das torrentes e dos aflitos, vais de joelhos até onde te seca a
saudade de um dia espúrio. Nem já o fado te pode salvar das preces ao
desafio! Rumorejas uma sílaba apetecível no céu da boca dos espantos.

E no entanto, compareceu! Alinhou na equipa inicial dos histéricos eunucos,
driblou os comparsas na sugestão occipital da memória e fez-se ao limbo
como quem espera por Cristo. Na parábola mais famosa, viram todos os
jogos pela televisão da Ana, que era lógica em tudo o que fazia e dizia.
Momentos mais tarde, surge um clarão das trevas. Os governos diziam
que era o pranto do demónio, um teatro da crueldade atroz. A oposição
ripostava e culpava o mau uso do Português governamental, afirmando:
-O que o senhor queria dizer era credulidade atroz. O nosso povo possui
um demónio que carrega o fardo da credulidade! O Crédulo é o ópio do povo!

Depois disto, sempre uma neblina que nos consome de fome. Idílicas são
as fontes do desvario e o polvo é quem mais tentáculos ordena nas missangas
da vida. A prestar contas todos os dias, lá vai o defunto na redoma de vidro.
E numa brisa suave, um diadema de prata em teu ventre, gasolina a resfolegar
quilómetros de insensatez. Os carros não se querem bonitos, nem mesmo as
paisagens emolduradas. A fealdade é rainha do pretérito-mais-que-presente
no perfeito corpo a deambular na salsugem. E no entanto, era ela, desde sempre!
Vernáculo lunar e adiposo, as marcas do pó bolorento e rude eram tuas desde
a partida. E no entanto, outro entretanto foi ficando. E no entanto, era eu!

13 de junho de 2009

António Variações - 25 anos de Saudade

Hoje assinalam-se os 25 anos do desaparecimento de um dos grandes ícones da música nacional dos anos 80, aquando do surgimento da música moderna portuguesa. Ele desbravou, juntamente com grupos como os Heróis do Mar, GNR, Sétima Legião, Rui Veloso, Táxi, Trabalhadores do Comércio,Grupo de Baile, Xutos e Pontapés, UHF (entre outros) um percurso singular e irrepetível.
António Variações, que dizia que a sua música situava-se entre Braga e Nova York
(entre as suas origens, de Amares, concelho interior perto de Braga e a pós-modernidade artística da grande cidade Americana), consegue de facto, passados estes anos, conglomerar
um repertório de grande actualidade e vivacidade comunicativa. Nas suas letras e músicas respira-se a novidade, os ritmos do disco-sound vibrantes e dançáveis, mas também
a contenção saudosística de temas mais colados a uma base folclórica ou fadista
(temas de Amália Rodrigues, uma referência para o artista).
Tudo isto para assinalar a perenidade do seu legado artístico (basta ver o revivalismo de
muitos cantores nacionais ao reinterpretarem as canções do António), que continuo a ouvir sempre e cada vez mais, no meio do marasmo musical actual. Ouvir António Variações hoje
é dar sentido à voz, à fala de um artista maior e avançado para o seu tempo. O seu ideal de liberdade, a sua atitude perante a vida e o modus vivendi dos portugueses faziam falta
nos dias de hoje. Para mim, uma referência nunca esquecida!

9 de junho de 2009

O Bolso

Gosto de andar por aí, com a mão no bolso, num misto de descontracção
e desafio irónico à vida agitada de quem sai a correr dos transportes públicos
de uma qualquer cidade sobrelotada. Olho para as minhas calças de ganga.
Têm o desenho perfeito para esconder as minhas alvas e frias mãos. Lá dentro,
tenho um mundo inteiro para dez dedos com o frenesim da descoberta. Ficam
assim, às apalpadelas ao tecido suave e um pouco sujo do bolso. Lá, existe areia
dos dias de praia com um livro na mão, o cotão dos dias seguidos sem pôr a lavar
a calça, já surrada de tantas cadeiras, bancos, escadas, rochas, camas. À volta deste
bolso, um mundo feito de indústria. Os rebites do pequeno bolso, onde pode caber
uma moeda meio esquecida; um isqueiro, caso fumasse; ou um amuleto qualquer,
se acreditasse neles. No bolso grande, reina a maioria. Numa área maior, mais artifícios
posso colocar. Desde o passe que almeja socializar com a transeunte do autocarro ou a
vizinha do metro, o telemóvel que fica quente e mais silencioso neste bolso, um cartão
multibanco, leve e pronto a gastar, uma nota, um papel, uma concha, tanta coisa pode
caber neste meu bolso. Mas o que mais gosto é chegar ao fim do dia e encostar-me a
uma conversa com as mãos meio descobertas, à espera de comunicarem. E quando
chega a sua vez, elas libertam-se e são demasiadamente expressivas. Depois do calor
comunicativo é hora de recolher, reflectir e por fim, descansar nessa concha suave,
silenciosa e perfeita que é um bolso. Esquerdo ou direito, lateral, traseiro. Um bolso.
Uma muralha perfeita para os dias em que as minhas mãos são um castelo de emoções.

3 de junho de 2009

Waiting 'Round You

Deriva do olhar. Enviesado rosto que se me estende num lugar apetecível.
Rumorejante e inexplicável ventre. Uma sombra lúgubre na memória das
datas. Deriva de tudo, um suplício, uma mão atada à parede e contorcendo-se,
pedindo perdão pela gravidade dos corpos, uma farsa de Newton, onde as
maçãs apodrecem no colo suave de um beijo. No teatro da derrisão, há
uma anacronia de genes e as antíteses são mais teatrais que uma real
construção de sentidos perenes. A música agora é bastante forte, não pelo
seu volume, mas pela emoção que dela deriva. Desta feita conto-te o que
ando a ouvir: Tindersticks. Waiting 'Round You é o tema. Desta vez não me
deixo ficar por meias palavras, sentidos ocultos, escrita rasurada. É do tempo
presente que te escrevo, doce ouvinte das estórias em surdina. Precisava de
um campo minado onde plantar amor em hectares sem fim. Ou então, longos
abraços ao som desta música celestial. Só o amor nos irá salvar! Parece cântico
de igreja de dízimo nos bolsos dos que mandam, mas apenas é uma frase solta
no gerúndio da vida, numa viela estreita de um subúrbio por descobrir. Em vez
de querermos encontrar, devemos descobrir a vida e os outros. Descobrir é dar
ensejo ao pássaro nervoso que olha para todo o lado, que deveria estar em nós.
Lembro-me quando me chamaste isso, numa noite em que nos estávamos a
descobrir. Fiquei tão contente com essa deixa. E eu disse a réplica ideal: sou
assim um animal pequeno e nervoso, piscando os olhos à beleza. E há tanto que
pisco para ti, para os teus olhos, para a tua prosódia, a linguagem infinita do teu
corpo, indecifrável tantas vezes. Neste mistério fiquei. Num passado tenso feito
presente mais-que-perfeito. Era a última fala possível deste drama, um solilóquio
encenado por ti e interpretado pela imaginação deste dramaturgo que procura a
todo o custo encontrar os elementos perdidos na poeira do caminho. No deserto
que fui encontrando, além das pedras e das raras plantas, descobri um oásis onde
exprimir-me. Estava iniciada a viagem para os caminhos da imaginação. Só no fim
soube que eu, era apenas eu. Um eu composto de muitas camadas de tu, de muitos tu,
muitas segundas, terceiras pessoas do singular. Num plural de melodias e sons afectivos!