28 de maio de 2009

Forma de Estar

Forma de estar. Módulo encaixotado e rígido. Uma baliza que te impõe o mesmo resultado.
Se soubesses dos desfechos do mundo, estarias fora dessa gaveta, uma caixa de sapatos
onde os bichos da seda se encontram. Procuraste as folhas de amoreira para as alimentares.
Depois da humidade do lugar, ei-las, as árvores naquela volta do duche. O dia estava
realmente ventoso e húmido e só a tua pequena casa de sonho no meio do monte te
predispunha a falar comigo. Fizeste o jantar com muito carinho, com toda a candura
que transportas por esses lugares fora. O vinho fui eu que o trouxe, um daqueles do
Douro que ambos apreciamos, entre uma garfada e um beijo. Se soubesses o quanto
gosto de ti! Mas não sabes, porque vives a vida como se não houvesse amanhã. Um dia
acertarás no calendário, mas enquanto tiveres de riscar os dias a lápis de cor vermelha,
esquecerás o simples e essencial: o amor em tempos de guerras, entre as palavras em
demasia e a imagética do que se não diz. O Amor é uma lança que fere quem se deixa
ficar na frente de batalha da paixão. O romantismo pode salvar o golpe em demasia
da futilidade das desavenças. Na melancolia que escolho para o meu recolhimento,
despejo a última gota no meu copo solitário. Já foste embora da tua casa e eu deixei-me
ficar: na utopia, nas lágrimas salgadas da misantropia. Deixaste-me uma carta de
chegada, na despedida mais atribulada do mundo. Guardei-a para sempre nas minhas
memórias e voltei finalmente à minha casa-abrigo, um eremitério sem calendários
de partida nem chegada. Agora, só o calor e a seca são a companhia dos dias imperfeitos.

22 de maio de 2009

Algum dia Perceberei o que Escrevo?

A estante. A agenda com todos os últimos registos de vida. Parto daqui para fora.
Acabo de queimar a câmara dos desejos naquela casa perversa. Agora, só escombros
e dor. A morte de alguém, um dia colorido na minha hirsuta barba e um cabelo agitado
ao vento, destrambelhado. Os pés nus e a cara rija. Frio é o que não falta na serra da
Peneda. Castro Laboreiro, Lamas de Mouro. Aqui estou bem, posso dormir descansado
de todos os crimes cometidos. Um bornal ajustado à razão do meu corpo, a sudação de
uma pele e um olhar de garrano atento entre as urzes e os vidoeiros. Alta roda da noite.

Desaparecendo na surdina ordinária do deserto, consomes-te no frágil nevoeiro da
fidelidade. Prefiro a suprema ironia de te ver pelas costas. Há sempre uma carta tardia,
um horóscopo sincopado na tua infantilidade. Acreditar nas datas perfeitas e que mais?
Só tens solidão e mágoa, pútrida cara enfadonha e ensimesmada. Egoísmo e narcisismo.
Foi isto que me disseram sobre as novas gerações, fechadas nos seus sons e nos aparelhos
de tapar os ouvidos para o mundo. Sempre a mesma ausência de silêncio que já diagnostico
há décadas, fisiologista dos sentidos que sou. Vem, com a esperança gasta das horas na
plúmbea arte de manobrar as mãos. As mãos e os dias, esfera inacabada do sucesso,
planta de altar-mor enegrecida, Mértola é já ali. Os Mauros da Mauritânia foram agora
descobertos. E de sol a sol se planta o trigo no Alentejo sarraceno, volta a Portugal da
eternidade, na perenidade de um sonho. Rufam os tambores. Baixo motor do dia.

Queria um complemento poético, receitado três vezes ao dia. Verbos incondicionais,
mente inquieta, horários por cumprir em demanda da saudade. Já chega de relógios
e pontes, sempre o desejo em particípio passado, letras e mais números, álgebras
lineares num quarto vazio. Fecha agora a porta, com um sorriso nos lábios e some-te
da vista dos mortais! Na metástase do pensamento, há adolescentes a mais nas fotos
de consumo imediato. Mastiga e deita fora a harmonia do mundo. Tanta zurrapa nas
frontes, pistola a atirar ao ar mais medo que consolação. Um torpor que te mata e
deixa-te na prisão insalubre. Escolheste a bifurcação errada e não sou eu que te vou
ensinar o caminho de volta, Ícaro. Nos teus labirínticos destroços, procuras em vão
Dédalo e choras copiosamente. Quem te mandou ser tão perfeccionista? Quem te disse
que só de realidade é feita a argamassa dos humanos? Ah, para que fazes tantas perguntas?
Procura antes o fio de Ariadne, tua única e derradeira saída. Guarda a criança dentro de ti,
perde-te nas planícies imorredoiras, sacode os pés contra a terra dura e seca. Cresce
e aparece! Vai já passar, o mito acalma-se na fogueira das vaidades. Preâmbulos e
didascálias. Apetecia-me agora escorrer os livros com água-benta da poética militante.
Quero cravar uma faca na lombada do desejo assassino, livros por encomendar. Sonho
agora com o desejo de escrever um pensamento, um poema apenas. Não consigo!
Quem me dera perceber-me! Algum dia perceberei o que digo, o que soletro, o que marco?

Fachadas, náufragos nas pedras frias. Os cornos de lana caprina são saltos no escuro
de um pensamento tergiversado na névoa de um sonho. Palavra gasta e usada, palavra
prostituída, calcada, rasurada, comida. Deus e o homem são inimigos fidagais. Um som
inquietante chama-me lá de fora. Tenho medo de sair, tenho medo das sombras nos
olhos cinzentos da morte. Uma nova promessa de acordo alucinado. Um novo prémio,
das utilizações mais agudas e rápidas na história do saber digital. Falo de dedos, carpo
e metacarpo. Torso e banalidades de última hora. Chá e torradas para o caminho.
Violações e pestes no caminho de Pinter. Um dia farás anos e oferecer-te-ei um livro.
Agora vou-me embora, apetece-me voltar ao cadafalso, com um sorriso nos dentes
e uma cefaleia incomensurável. Masturbo-me agora em silêncio, deixai vir a mim
os remorsos de uma moral em queda livre, olhos que me reprimem e dão-me mais
vontade de acabar com tudo, com a inveja, a putrefacção das cidades, os esgotos e
as vozes de protesto. Ah, quero regressar, quero acordar, chamas, nuvens, a loucura.
Deixai-me cair na cama dos horrores! Esta realidade é demasiado perversa e mortal!
Chega. Chega! Quando queimarei tudo isto? Quantos fogos-fátuos ainda terei de cometer?

21 de maio de 2009

João Bénard da Costa


In Memoriam de JBC. Grande personalidade, um apaixonadíssimo cinéfilo.
O Senhor Cinema. Graças a ele, desenvolveu a Cinemateca, que nos continua
a dar os seus bons filmes. Obrigado, tu és o "Johnny Guitar". Até Sempre!

20 de maio de 2009

Foi Longo o Silêncio

Foi longo o silêncio. Demasiadamente longa esta toalha que estendi às emoções.
Agora percorro todos os transportes públicos numa ufana e triste memória.
Acho que te vi. Saías do teatro, tal como eu. Encontrei-te de novo no metro,
na Praça de Espanha. Infelizmente, eu ía para a Baixa e tu para outro percurso.
Sei lá se para o Zoológico, se para o lógico Alto dos Moinhos ou o ilógico Colégio
Militar barra luz. Bem que eu precisava da tua luz, da tua presença. Uma palavra,
uma só palavra e eu seria o teu alfabeto de idílicas memórias. Porque me fecho
na concha do meu sofrer, na minha ingratidão incomunicável? Sou o perdedor
nato das vivências e dos sorrisos. Agora sucumbo nesta falésia prenhe de silêncio.

O rumor das vozes em demasia, a surdina dos bravos soldados da Prússia. No
hospício em que me encontro, há paixões imensas nos olhares ensanguentados
da guerra. Quente guerra na gruta ascensional da moral. No tractor de Müller,
vi restos de corpos inclinados para o céu. Fuligem espalhada na aragem das
colinas. Volto de novo o olhar a Lisboa, cidade enferma de vozes que me sacodem
a pele, que me eriçam as rugosidades e partem violentamente para uma nova
estação, um novo transporte que me apazigue a escrita. Agora estou bem, sinto-me
a marchar ao vento no sanatório desabrigado e vazio. Em vão procuro de novo
a órbita estelar do teu corpo, minha mão transfigurada dos açoites, carne viva
sem cor, olho-te à distância, anseio-te e perco a cabeça, desisto! Silêncio, silêncio!

10 de maio de 2009

Nublada Poética

Nublado o mundo. Petrificada na orla do bosque, a memória. Sonhos
salgados no sargaço mais profundo do teu rosto. Agora percorres a
enseada cálida das saudades e fixas um ponto nos horizontes das
tuas utopias. Na fímbria delgada do mar revolto, há todo um rochedo
mental que te inibe no deambular da tua viagem insone. Penso em
ti, poema imperfeito e ridículo que te ofereço em surdina. Acaricias
o papel que te ofereço, mergulhas no mar profundo e na salsugem
do teu corpo, deixas-te ficar entre as nuvens passageiras e o meu
pulso, em que te agarras com delicadeza. Nos meus dedos ainda
existem perífrases de fantasia. Por ora, apenas um calor inaudito
na gíria anódina dos abraços que festejamos na corrente do mundo.

6 de maio de 2009

A Propósito da Feira do Livro 2009

"A Literatura é perfeitamente inútil. A sua única utilidade é que ela ajuda-nos a viver."
Claude Roy, Escritor
É por isto que fui ontem e continuarei a comprar livros. Não vou à Feira do Livro, vou
dialogar com eles, os livros. Os livros são como as pessoas: uns mais altos, outros mais
gordos, outros minúsculos, outros com uma óptima aparência, outros discretos, alguns
gastos pelo tempo, usados, dobrados, tisnados e amarelados pelo sol. Outros ainda por
abrir, ingénuos, ainda por rasgar as suas páginas com uma faca (Edições Sá da Costa).
Mas mais importante que isso, é quando se abrem (as suas bocas?). Quando comunicam
connosco. O que nos têm a dizer. Aí temos os bacocos, os inúteis, os fúteis, os clássicos,
os imponentes, os vaidosos, os amorosos, os desastrosos, os irónicos, os divertidos, os
solenes, os religiosos, os ateus, os comunistas, os situacionistas. Enfim, os que promovem
a guerra, os que promovem a paz, os que votam, os que não votam, os moribundos,
os esquecidos, os abandonados (vide em Alfarrabistas), enfim, uma plêiade de homens-
-livros. Eu prefiro os bons! Os que me tocam, que me olham nos olhos, que me estimulem
intelectualmente (quantos livros para a infância estimulam-me mais que outros "ditos"
para os adultos?), que me convidem de soslaio, com charme, sem alarido e sem pressa
num tom apaixonado: "- Queres levar-me para casa?"

5 de maio de 2009

Féretros da Luz

Há horas amargas do sentir! O devir da luz estava convosco.
A morte saiu à rua na infâmia infinita do universo. Entre o teatro
e as sombras, um trabalho árduo nas favelas dos Oprimidos.
Um serviço público e social, graças à tua dedicação, Boal.
Pela causa dos desprotegidos, por um teatro sério, nobre, ético.
Obrigado pelo legado que nos deixaste, por podermos nas ruas
transformar as utopias em realidade, porque é de teatro real
que falamos. Vamos continuar esta luta terrível e desigual!
É de um anjo que vos falo. Um anjo do desespero, como diria
Heiner Müller no seu poema? Talvez. Este era um homem
discreto, entre os balcões da Bertrand onde trabalhou em
prol da leitura e a fantasia de todos os seres que ainda têm
em si a criança de olhos brilhantes nas estórias dos imortais
desenhos animados na televisão. Foi graças a ti, Vasco Granja,
que descobri a boa animação, especialmente a tua predilecta,
a dos países de leste. Nos anos 70 e 80, vivi apaixonadamente
esse sonho de ser sempre criança e imiscuir-me nas ficções,
nas cores, nos sons dessas pequenas obras de arte. Depois,
a tua voz, a tua figura, eram o conforto e a protecção que eu
precisava. Essa sensibilidade, essa calma, eram motivo para
não perder os teus programas. Como se fosses o meu pai a
contar-me todas as estórias possíveis e imaginárias, do lado
de lá do ecrã, mas tão próximo igualmente. Obrigado Vasco,
meu último herói da Banda Desenhada. Estarás sempre no
meu imaginário, na minha criatividade feita sonho, pureza,
sensibilidade e vida humanamente ética. Até Já Vasco!

São ambos Féretros da Luz, no meio de um mundo de sombras!

2 de maio de 2009

Maio (entre Paredes e Zeca)

Maio. Em Coimbra já se agitam os choupos no Mondego.
E a guitarra sibilina de Carlos Paredes já toca no largo da Sé.
Nada de nostalgia nem tradição. Falo de uma Cidade e dos
seus momentos de solidão. Das renovadas gentes que chegam
e partem da urbe da passagem. Transmutação para vida
adulta, rasgar com o passado. Usar a memória e o coração
e fazer-se à estrada. Por ora fixo o olhar em Santa Clara,
com mosteiro e os doces da minha gulodice. Fora isso, um
cheiro a flores do campo e uma ponte de dúvidas na via
acidentada do futuro. Hoje apenas, um fruto maduro de Maio.