29 de junho de 2006

sonhar é sonhar é sonhar

Foi uma carnificina que não aconteceu, logo explicada à luz do filme-do-mês primeiro e de Brecht-o-do-distanciamento depois, quando apenas um pesadelo foi sonhado na noite de borrasca, acordei a ouvir o bater da chuva no telhado e os trovões ribombavam ao longe despertei e mantive cada detalhe na minha memória e nenhum Freud - verdadeiro ou de ocasião – precisou de me explicar o sucedido, por assim dizer, Müller sonhava com gládios e mulheres mortas, eu sonhei com mutilações realizadas com precisão clínica sem quaisquer pruridos,
num dos seus sonhos-poema, Müller, enquanto caminhava por uma floresta, conseguiu ver na criança que lhe surgiu e lhe fez sinal de morrer o seu próprio rosto, o meu rosto olhou-me a criança era eu, disse
os sonhos são como a família não se escolhem, são aqueles e não outros, quando era novo infligi a mim mesmo um corte no braço e na nuca em frente aos meus amigos na mesa de café, não doía, a lata de sumo retorcida apenas um risco avermelhado, demorou uns dias a cicatrizar e eles a aparentarem normalidade nas reacções, como fiz – fizemos! – poucos anos depois quando o Adolf, assim o chamávamos com despudor, se levantou e tentou cortar-se em plena aula com uma faca das cantinas, nada lhe aconteceu, apenas um gesto algures entre a pequena tragédia e a comédia esforçada, gracejámos com o sucedido, alguém lhe rebuscou o quarto e encontrou aqueles escritos desconexos na sua letra quase indecifrável, falava de si na terceira pessoa, já se imaginava a falar com enfermeiras, virei a cara para o lado quando o vi poucas horas depois à porta de casa, como se houvera visto um fantasma, virei a cara para o outro lado e nesse lado não vi a sua expressão de sempre, entre a estranheza e a angústia velada, dias depois, enquanto ele folheava o Der Spiegel, perguntámos-lhe estás melhor e ele sim a sorrir desajeitadamente e voltámos a ouvir-lhe a célebre frase Os políticos são todos uns merrrdas! E a vida lá prosseguiu, o tempo não suspendeu o seu curso, como anos antes, isto anda para a frente e para trás, anos antes de novo no liceu, quando nos juntávamos nos intervalos naquela esquina daquele bloco, naqueles nadas com que nos cruzamos na juventude, usávamos botas de pedreiro e camisas de flanela com que dizíamos a toda a gente de boca fechada nós temos ideais, nós ainda temos ideais, só não sabemos muito bem quais são, mas quando formos mais velhos e os não tivermos saberemos do que se tratava afinal, ouvíamos música grunge e, sem sabermos muito bem porquê, ganhámos um porta-voz para a nossa revolta de adolescente que por ali pairava, por essa altura voltei a ser criança quando ela morreu num acidente de automóvel, já pouco nos falávamos mas nessa tarde à porta de casa pus-me a chutar a bola contra a parede repetidamente até que desatei a chorar, chorava pontapeando a bola, nessa tarde as minhas lágrimas e o meu ranho foram para ela,
-Mija! Mija!
Dois anos antes tínhamos sido colegas de turma e de mesa, brincando disse ao professor que se não podia ir à casa de banho ia fazer mesmo ali, houve risos pela sala, e ela pouco depois
-Mija!
Entre trocas de sorrisos
Alguém perguntava então ele já fez, eu nem estava para isso, mas pouco depois, mantendo-me sentado, cheguei-me à frente e discretamente fi-lo, o professor só soube dias depois, o feito heróico da semana

suponho que nesses dias tenhamos crescido mais rapidamente do que o desejável, naquela cidade-vila pequena como um ovo, daqueles em que temos de cortar várias rodelas até alcançarmos o amarelo da gema.

A Paz Adiada

Venho laconicamente informar-vos do adiamento da data de estreia de "Em Paz", a nova produção do Trigo Limpo Teatro ACERT. A nova data ser-vos-á comunicada assim que vos puder ser comunicada.

Barrocas Paisagens do teu Olhar

O porquê do teu nome, não sei!
Conhecemo-nos há dois minutos
no café arcádia, junto ao luminoso
tecto de pinturas barrocas

Contei-te das minhas viagens,
do meu mundo
disse-te o meu nome,
e nem sequer me olhaste de lado.

Fiquei perplexo, irritei-me por
não me odiares naquela enseada
dos corpos ausentes

Continuo sem saber o teu nome
Prefiro nem sequer pensar nisso
Só não quero voltar a olhar-te de viés

Não quero chegar ao frémit
oda evasão dos sentidos
a suposta melodia inacabada

Apenas o teu olhar, a montanha
que transportas no teu pensamento
O tique silencioso e imperceptível
da tua ondulação, dos teus queixumes

Sofro contigo, na agonia de te ver
suicidária das emoções
Loucura permanente e inusitada

-Levantei-me de repente!
Osculei-te a mão antes que pudesses
retorquir uma palavra de desagravo
ou solidão

Perdi-me nas ruelas da cidade incauta.
Só pensava em te esquecer!
Sacudir a poeira herege do meu
inexperiente amor

A mordomia do gesto consentido
a palidez da memória
e o teu odor inacabado
Ah! Que tresvario é esse em
que ambos consentimos?

Que remorsos ficaram?
Que funesta nuvem trespassou
o meu púbere corpo?

Decidi esquecer-te, lembrando-te!
E perscrutando os teus etéreos
sonhos na frondosa copa dos
viçosos e altos carvalhos

Vi-te e revi a eterna inocência
da minha voz velada
perante tamanha sapiência
nos gestos e atitudes que
asseveravas

-Adeus, até logo!
Despedi-me de ti,
árvore secular

E persignado, percorri
as rotas da imaginação
diante das mais sagradas
imagens que me ofereceste
num puro gesto de amor profundo!

[Dedicado a t(r)i...lby]

28 de junho de 2006

Dança Chamas

Dança chamas
Horas partilhadas
na melancolia

Melopeia íntima
e graciosa

Cuidados telúricos
achados antigos

O corpo esfuma-se
na memória das cinzas

O instante carcomido
é lentamente esquecido

O sonho, nocturna viagem
aérea, por onde timbravas
a maresia eterna do teu voo.

23 de junho de 2006

Poesia Instante

Instante.
Carcomido.

Louca noite
feita destino.

Breve pausa
na monotonia.

Plúmbeas névoas
de fotografia.

Roubado negrume.
Fina melancolia.

Poesia Constante.
Ilusão do dia

22 de junho de 2006

Vida Completa

Os ossos carcomidos
A mente inquieta
O terno olhar da sabedoria
O luxo de te encontrar com esse sorriso

E eu, que me comovo por tudo e por nada
Socorro-me de ti nas horas amargas
Dás-me a paz e a alegria
De aprender com essa vida

O gosto pela fé, pela dúvida metódica,
Pela frieza ancestral de quem já sofreu e
Trabalhou muito nesse Alentejo infernal

Pelo contrário, na Beira Serra fria, com
os pés descalços e quilómetros por percorrer
Aprendeste a dureza, o calo, e só a neve e
os animais eram tua companhia

Chegaste agora, neste dia de estio
o Dia maior, a Noite mais curta
És solstício, És aparição,
És romper d'aurora

És noite inquieta
e uma vida completa!
(À minha avó, que faz hoje 95 anos)

20 de junho de 2006

A Silly Season está a chegar! - Problemas de ser Português

A estação parva, ou seja, o verão, está a chegar aí. Aliás, pode-se dizer que já chegou, com o futebolês reinante e os imensos festivais de música, com a malta a embriagar-se a torto e a direito. Posso parecer um velho a falar assim, mas é a verdade nua e crua. A política vai a banhos, amanhã até se adia o plenário da tarde devido à tão nobre causa Luso-Azteca.Não é que não goste de futebol, nada disso. Não é que não seja patriota, muito menos isso. O que me incomoda é ver o nosso país mergulhado na mais profunda crise. E não, não vou falar na tão propalada crise económica, disso percebem outros, mas falo de uma crise na Educação, uma crise Social, uma crise Cultural, uma crise de Cidadania. O Português é um povo amorfo, com falta de Escola, com falta de estudo, que não se recicla, que tarda em aprender, se é que aprende alguma coisa. Constrangem-me as multidões, seja para apoiar uma selecção, seja para apoiar um candidato presidencial. Já dizia Henrik Ibsen, dramaturgo Norueguês, falecido há precisamente 100 anos, que criticava duramente a sociedade da época em que viveu, na altura, uma sociedade regida pela moralidade acérrima, pelos valores da família, da religião, da propriedade, das aparêncais da era Vitoriana (final do Séc. XIX). Dizia então Ibsen, autor de obras como "Uma Casa de Boneca" ou "O Inimigo do Povo", que "as maiorias nunca têm razão, só nas minorias se pode achar alguma independência de pensamentos, longe da fachada massificada do pensamento e atitudes maioritárias". É do mundo dos pequenos que falo e que pertenço naturalmente, não por uma atitude puramente reaccionária contra o "forte rio e a sua corrente que pressiona as margens", mas por estar plenamente envolvido por uma vivência minoritária. Seja ao nível político, cultural, social, geracional. Não é uma atitude elitista, é antes uma visão diferente. E pergunto eu, o porquê de não se dar atenção ao interior do país desertificado e idoso, pobre? Quem quer saber de 75 % da área do nosso país? Onde só há 20 % de pessoas a viver, quem olha por eles? Quem pensa no Interior? Tantas oportunidades que há, com trabalho, com qualidade de vida, mas ninguém investe, 0s médicos e professores querem ficar ao pé do Centro Comercial ou da praia. Eu, que já vivi 3 experiências no Interior, e que não estou de momento, porque não há hipótese do estudo específico que estou a efectuar no interior, posso-vos falar do imenso prazer que foi trabalhar e viver aí (Alentejo Interior, Beira Alta), da qualidade de vida, mas infelizmente, há pouco mercado, há poucas pessoas, não há o reconhecimento estatal pelo trabalho efectuado. É pena!Depois, quem pensa em política, em Cultura, em Cidadania, nas questões base do povo Português nesta altura do ano, com o mundial a fazer-nos esquecer os males deste país. Quem pensa em melhorar os índices de sinistralidade nas estradas, quem pensa em melhorar as suas aptidões educacionais, curriculares, quem pensa em combater a obesidade infantil, o alcoolismo juvenil, o absentismo profissional ou escolar, quem pensa em ler Agostinho da Silva, Eduardo Lourenço (O Labirinto da Saudade), José Gil (Portugal - O Medo de Existir), grandes nomes que pensaram o modo de viver Português, também focando alguns aspectos positivos. Mas, como é possível que desde há 200 anos diversos escritores, intelectuais, falem de Portugal do mesmo modo, referindo sempre os mesmos problemas, e não mudamos, não resolvemos os nossos crónicos problemas do passado? Que modorra é esta em que constantemente repousamos?Que sol, que clima nos febrilmente nos incapacitou fatalmente? Que fado, que destino nos desencontrou? É num mar de dúvidas e questões que me encontro, e quanto mais velho estou, mais dúvidas tenho acerca do "ser português", neste mundo global, rápido como a internet e em que quanto mais informação temos, menos nos comunicamos uns com os outros.

15 de junho de 2006

performance

alcançou o teatro vindo do jardim situado nas traseiras, munido do bilhete.
estava tudo pronto e o espectáculo podia enfim começar.
o espectador-carrasco tinha diante de si duas pessoas nuas, deitadas de costas, um instrumento de corte semelhante a um serrote e algumas toalhas.
principiou a mutilar os artistas-vítimas, alternadamente, começando por decepar os membros posteriores e passando depois para as mãos, em cortes de cerca de 15 centímetros de perna ou braço de cada vez.
como clientes de um talho escolhendo a carne, os artistas-vítimas apontavam a zona onde pretendiam que o carrasco fizesse a próxima amputação: "aqui, se faz favor".
por vezes tornava-se necessário limpar o instrumento de corte do sangue acumulado, servindo-se para isso das toalhas à disposição.
o sangue não esguichava em grandes jorros, como nos filmes gore; era como a cortar um órgão esponjoso, e o sangue acumulava-se nas zonas de corte.
de quando em vez o espectador-carrasco perguntava aos artistas-vítimas se se sentiam bem: a resposta era afirmativa, eles tinham a atitude vagamante sofredora mas conformada de alguém que se presta a um pequeno sacrifício em prol de algo maior, como os que ficam dias seguidos agarrados a um carro num centro comercial, sabendo que o último ficará com ele.
o carrasco-espectador mantinha-se impassível, com uma frieza clínica, mas depois do quarto ou quinto corte, tomou consciência da dor que estava a infligir aos artistas-vítimas. e despertou, inquieto.
- Ontem à tarde tentei ligar-lhe.
- E então?
- Então nada, ela não atendeu. O t`fone chamou, chamou...
- O t`fone chamou?
- Por assim dizer. Tuuuuuuut, tuuuuuuut, e nada, até ao correio de voz.
- Que fizeste? Deixaste-lhe mensagem?
- Não. Voltei a tentar, mas o resultado foi o mesmo. Cinco vezes tentei... e nada. Ela não quis atender o t`fone.
- Clara! Sabes o que isso quer dizer, não sabes?
- Sim... foi uma cena sado-maso.

13 de junho de 2006

Chuva Breve

Odores, matéria-prima dos desejos
sorrisos, formas abreviadas de se cumprimentar

Cheiro da terra molhada e húmida
chuva breve, macilenta

Tenho boas novas para te contar
Um olhar luzidio
e a saudade por encomendar

9 de junho de 2006

Campeonato do Mundo 2006

COMUNICACÃO EXTREMAMENTE IMPORTANTE PARA SERCIRCULADA POR ESPOSAS, NAMORADAS, NOIVAS, MÃES, IRMÃS,FILHAS (PARA TODAS AS MULHERES EM GERAL).
ESTAS REGRASDEVERÃO SER COMUNICADAS ANTES DO CAMPEONATO DO MUNDO JUNHO / JULHO 2006

LISTA DE REGRAS :

1. Do dia 9/6 até dia 9/7 2006 , devem ler a secção desportiva dos jornais ,para se informarem do que se passa, caso contrario Não poderão juntar-se às conversas. Caso não o façam, serão olhadas de uma forma negativa ou até mesmo completamente Ignoradas.NÃO SE QUEIXEM se não receberem qualquer tipo de atenção.
2. Durante o CAMPEONATO, a televisão é nossa, 24 horas , sem qualquer excepção .Se olharem mesmo de relance para o Comando da TV , correm o risco de perder …. 1 olho.
3. Passar em frente à TV durante um jogo é permitido, desde que seja a rastejar pelo chão, sem causarem distracções. Caso pensem em se colocar nuas em frente à TV, seria melhor vestir qualquer coisa, pois caso apanhem uma constipação,Não teremos tempo de as levar ao médico durante este período.
4. Durante os jogos, seremos cegos surdos e mudos, com excepção de vos pedirmos para nos chegarem uma cerveja fresca ou Qualquer coisa para comer. Não pensem sequer que vos vamos ouvir, nem peçam para abrir a porta, atender o telefone o Ir buscar o bebé que caiu do berço. Isso não vai acontecer.
5. Seria uma boa ideia vocês guardarem 1 ou 2 dúzias de bjecas bem frescas e em permanência e sempre qualquer coisa para petiscar, e também uma cara sempre bem disposta para os amigos que venham lá a casa ver os jogos.Em troca, poderão usar a TV entre a Meia noite e as 6 da manha , com a excepção de retransmitirem algum jogo durante esse período.
6. POR FAVOR, caso nos vejam de trombas porque a selecção esta a perder (Improvável) NUNCA digam, “deixa lá, ganham para a próxima”. Correm sérios riscos. Palavras de encorajamento nesta altura são contraproducentes.
7. São sempre bem vindas para se sentarem ao nosso lado durante UM jogo e para falarem connosco durante os intervalos, mas apensas durante os anúncios e apenas se o resultado nos agradar. Atenção que dissemos UM jogo e assim sendo não usem a desculpa do Campeonato, para passarmos algum tempo de qualidade juntos.
8. Ao contrario do que julgam, as repetições dos golos SÃO muito importantes. Não interessa se os vimos ou não vimos. Queremos vê-los outra vez e de preferência muitas vezes.
9. Seria de toda a conveniência as Amigas não terem filhos durante este tempo ou não agendarem qualquer evento social Durante este período, porque :
A ) não poderemos ir
B ) Não iremos
e C ) não vamos .
MAS caso o marido dessa amiga nos convide a ir assistir um jogo lá em casa, é como se já lá estivéssemos.
10. As reportagens, debates e entrevistas durante o Campeonato,são tão importantes como o jogo em si. Não pensem sequer em dizer “ já não viste esta po### , porque não mudas de canal para vermos qualquer coisa Todos juntos ?” . A resposta será: Por favor ver a regra numero 2 desta lista.
11. Por favor guardem a frase “ Graças a Deus o campeonato só é de 4 em 4 anos “ . Somos imunes a este tipo de pressões. Não se esqueçam que temos o Campeonato Nacional, a Taça, a liga dos campeões, a UEFA , o Chelsea do Mourinho , A Liga Espanhola , a Italiana , etc…
12. Será oportunamente comunicado se estas regras serão aplicáveis a outras competições e modalidades
Antecipadamente gratos pela vossa colaboração.
Com os melhores cumprimentos,
Homens do Mundo.

3 de junho de 2006

Os pontos negros

A Deco, associação de defesa do consumidor, iniciou uma campanha para combater os pontos negros nas estradas portuguesas. Gosto muito da DECO porque são uns eternos insatisfeitos, zelando pela qualidade de vida de todos nós. O meu vizinho Tó-Mi, que era heroinómano, contou-me uma vez que, por vezes, o “cavalito” que lhe chegava às mãos estava “marado”. Falei-lhe na DECO e na sua defesa intransigente dos consumidores, e ele entrou em contacto com eles. Mas como da associação lhe solicitaram uma amostra do produto para iniciarem as averiguações, a coisa ficou por ali. Mas esse acontecimento foi decisivo na minha admiração pelo trabalho da DECO, por isso dispus-me desde logo a combater os pontos negros, consciencioso como sou.

Vai daí, pelo final da tarde dirigi-me à via rápida que atravessa o meu bairro e pulei a cerca de arame farpado. Pus-me na berma da estrada e, com o auxílio de um espelho de bolso, comecei a procurar os ditos pontos negros na minha cara e espremi todos os que pude, principalmente na base das narinas.

Distraído como estava, mal me apercebi da aproximação de uma patrulha da Brigada de Trânsito, que se imobilizou a pouco mais de uma centena de metros de mim. Nessa altura lembrei-me de que não tinha comigo o colete reflector – multa certa, portanto. Os BT`s dirigiam-se a mim, toc toc toc, isto é, barulho das botas no asfalto, que é feito do clássico "Pare em nome da lei!", e lá tive de dar às de vila diogo e afastei-me dali em passo estugado, não descansando até me encontrar do outro lado da cerca (equivale a dizer que num só dia pulei por duas vezes a dita). Tudo aquilo me deixou a matutar: teria percebido tudo mal desde o início? Inventariar os pontos negros nas estradas portuguesas nada tinha que ver com o acne juvenil! Regressava afinal à estaca zero.

Até que avistei a casa da Dona Emília, a minha vizinha viúva. Depois de um incêndio que lhe destruíra a casa, há alguns anos, a velhota vivia transtornada (e estou a utilizar um eufemismo). Asseverava ter-se deparado, certa noite, com um “padre a marcar passo” e uma “nuvem de espíritos” no esqueleto do que fora o telhado da habitação. Aliás, ela afirmava manter conversas com os espíritos e jurava a dois pés que a sua filha mais nova nascera abençoada com um sinal em forma de cruz no “céu da boca” – “a minha Carla Lúcia é uma santinha!”, bradava a quem a quisesse ouvir. E o aspecto da velhota - redonda, anafada e com uma tez escura, a lembrar uma “mãe de santo” brasileira, levava algumas das pessoas lá do bairro a não descartar essa possibilidade (afinal de contas, sempre dá jeito dispor da ajuda de alguém com poderes espirituais).

Tentando evitar que me vissem, acerquei-me das traseiras da velha casa, na esperança de me deparar com um qualquer espírito que me aclarasse as ideias. Por ali cirandei durante quase duas horas, e nada. Nenhuma entidade sobrenatural se decidiu a contactar-me. Ainda fumei meia dúzia de cigarros, para ver se o fumo os atraía, mas em vão. Cabisbaixo, fui para casa, tomando já tudo o que houvera ouvido sobre espíritos como uma tremenda falácia, delírios despoletados muito provavelmente pelo álcool ingerido em doses pouco comedidas pela opulenta vizinha.

Chegado a casa, lanchei e dirigi-me ao meu quarto. Foi quando constatei que tinha deixado a janela totalmente aberta, abébia logo aproveitada por dezenas de moscas para se escaparem à canícula daquela tarde. Enfurecido, apoderei-me do primeiro objecto que tinha em cima da secretária, decidido que estava a matar todos aqueles seres abjectos. Mas quando vi que tinha acabado de pegar num mapa das estradas suspendi o movimento: “Mas é claro!”, gritei. “Agora tudo faz sentido!”. E, com um sorriso tresloucado nos lábios, apliquei toda a minha destreza de mão a espalmar as moscas com o mapa. Minutos depois, reinava de novo no quarto o silêncio livre de zumbidos. Depois foi só desdobrar o mapa e procurar aí os pontos esborratados acabados de assinalar e reportá-los à associação, com a satisfação interior de quem acaba de fazer algo em prol do seu país.
Façam como eu! Visitem a página da DECO e colaborem também nesta inciativa!

2 de junho de 2006

Poemas obscenos e indigentes no maldito estio que nos consome de fome

Foda-se!
Não percebo isto!
Estou farto de artistas a armar ao pingarelho,
mas que nem sabem como se escreve pentelho!

Entrei naquela sala e só vi infantilidades,
vaidades e ambição de subir na vida
por qualquer preço, por qualquer cama,
por qualquer corpo emprestado pra
conseguir ter um lugar.

Foda-se!
Percebo muito bem!
Imaturidade grupal, pois sozinho
seria o abismo do mundo
Ah! Seres tão oprimidos, tão sensíveis
e imutáveis flores de estufa.

Já chega deste pacóvio sentimento,
de ser um artista efeminado e
ostracizado pelos demais.

Foda-se!
Vou para casa,
deambular por aí dá-me sede,
nem que seja de sangue
e heresias por ressuscitar.

Pronto! Já estou mais calmo!
Já sacudi todo o fel para a
estrada das boas maneiras,
agora resta aos bons
resvalarem por ela!

Foda-se!
Poemas obscenos
numa noite quente
em que a entropia
dos corpos é insuportável!

Quanto mais quente, pior!
Prefiro a neve e o gelo,
o frio e as sombras
que contrastam com esta
plácida e parva estação do ano!