31 de janeiro de 2006

31 de Janeiro! Uma data para a Invicta comemorar!

A luta do 31 de Janeiro, em que os Liberais do Porto venceram os absolutistas miguelistas, foi mais uma importante vitória para esta cidade que nunca foi vencida, nem mesmo pelas Invasões Francesas!
Infelizmente, nos dias que correm, temos um Rui Rio que governa a seu bel-prazer, sem dar cavaco a ninguém! Este homem está a acabar com a Cultura. Soube hoje que na Biblioteca Municipal do Porto, um edifício histórico do Século XIX, lindíssimo por sinal e que frequento com assiduidade, está em riscos,não de ser demolido (isso seria impensável), mas de acabar com o depósito legal. Ou seja, tal como na Biblioteca Nacional, aqui, todas as obras que forem editadas, dão entrada aqui, para que o conhecimento também chegue aqui! Ou seja, o depósito legal de todas as obras literárias que saírem. Pois este senhor diz que não há dinheiro para tudo e pode acabar com o depósito legal. Pior é o estado das obras antiquíssimas, em degradação galopante, em que nada é feito, porque não há verbas! Até a falta de funcionários é gritante! Para o Rui Rio é que não me vão faltar verbos para lhe dizer tudo na cara! Nem sequer falo do Teatro! Este senhor quis acabar com a programação cultural do Rivoli, há 4 anos! Cultura para este medíocre são os Automóveis de corrida! E os túneis de Ceuta, das Antas. Meus amigos,só me apetece voltar a viver a revolução do 31 de Janeiro, bem no centro do Porto, contra este senhor que deveria valorizar a inteligência, a educação e a cultura desta cidade! Que rebentem novos 31 Janeiros! Tenho dito!

Eureka!

Consegui!!!
Consegui ultrapassar a barreira, a porta da discoteca.
Aproveitei uma distracção do energúmeno do portas, para aceder ao Maria Pernilla!!!!
É uma vitória minha e de todos os Portugueses!!!!
Bastou dar uma indicação diferente e o cérebro(?) deste animal pifou! Aproveitei o desnorte e...entrei! Pernilladas a dar com um pau, a partir de agora!
Eureka!

29 de janeiro de 2006

A hérnia de Alberto

- Uma hérnia inguinal? Nada de grave, portanto... certo? - assim reagiu Alberto ao diagnóstico do seu médico de família. Este aquiesceu:
- Sim, isto dever-se-á a um qualquer esforço, provavelmente no ginásio; é pequena e será retirada numa intervenção rápida.

Três meses depois, Alberto deu entrada no hospital local para a intervenção. Optou pelo final de Junho para a operação, pois assim esquivava-se à azáfama que naquela altura se apoderava da agência de viagens onde trabalhava. Estava tão bem-disposto que até gracejou com o médico-anestesista quando este lhe perguntou se estaria disposto a colaborar num estudo sobre os efeitos da administração de Prozac no bloco operatório.
- Far-lhe-ei apenas algumas perguntas predefinidas.
- Veja lá, doutor, não se aproveite de mim para questões indiscretas! - O anestesista esboçou um sorriso forçado. No dia seguinte, Alberto pediu para que lhe guardassem a hérnia.
- Só por curiosidade, pode ser?
Desejou a si próprio "bons sonhos" em voz alta; pouco depois ficou inconsciente.

A meio da tarde, foi visto pela equipa de cirurgiões.
- Afinal foi um pouco mais difícil do que esperámos, sabe senhor Alberto? A hérnia não queria sair, fez-se difícil! - gracejou a cirurgiã-chefe.
- Foi difícil de remover?
-Não, a hérnia não queria literalmente abandoná-lo. Tivemos de mandar chamar a equipa de psicólogos do hospital, para dialogarem com ela e tentar convencê-la de que deixá-lo era de facto o melhor caminho.
- Mas ela manteve-se irredutível! Dizia sentir-se muito bem no seu canal intestinal. - prosseguiu outro dos médicos. - Tivemos de recorrer a uma técnica que raramente pomos em prática, a hipnose.
- Hipnotizaram a hérnia para que ela saísse? - indagou Alberto, cada vez com maior curiosidade. Tudo aquilo era novo aos seus ouvidos.
- Sim, teve de ser assim. Mas correu tudo bem, pode estar tranquilo quanto a isso.

De seguida os médicos observaram Alberto e informaram-no de que teria alta daí a dois dias. Quando se preparavam para abandonar a enfermaria, Alberto pediu timidamente:
- Posso... poderia ver a hérnia que me retiraram?
- Ah, com certeza! - disse a enfermeira. E passou-lhe uma caixa de plástico transparente. Observou-a com toda a atenção - era pouco maior que uma amêndoa; depois devolveu-a, num gesto solene, à enfermeira.

Confirmando as previsões dos médicos, Alberto regressou a casa dois dias depois. Mas, apesar de conseguir caminhar, ainda que com algumas precauções iniciais (chegou mesmo a conduzir nesse mesmo dia, desobedecendo a ordens médicas!), não se sentia o mesmo. Apalpava constantemente a região donde lhe tinham retirado a incómoda protuberância e soluçava. Algo o afligia. Alguma coisa poderia não ter corrido bem? Em casa, recusava-se a comer e respondia com breves e mal-humorados monossílabos às diligentes perguntas que a mulher lhe fazia. Andava cabisbaixo e esquivo.

No Sábado à tarde, foi passear para o centro comercial. Vagueou por todas as lojas, admirando algumas montras e lançando olhares furtivos aos casais com bebés que com ele se cruzavam. Maquinalmente, saíu do shopping e dirigiu-se ao hospital. Esperou alguns minutos pela chegada do horário das visitas e entrou pelo serviço de cirurgia adentro. Foi ao gabinete das enfermeiras. - Faz favor! Olhe, faça favor!
- Sim? - voltou-se uma delas. - Precisa de ajuda?

- Sim, eu... - balbuciou. - Estive aqui na semana passada, para me removerem uma hérnia inguinal...
- E então, teve algum problema? Sente-se bem?
Envergonhado por fazê-lo na presença de uma mulher, Alberto desatou a soluçar. Apoiou-se nas costas de uma cadeira e rompeu então num pranto entrecortado por palavras desconexas.
- Sinto-me tão vazio desde que ela me deixou!
- Ah, o senhor separou-se da sua mulher? Lamento...
- Não é isso! Falo da hérnia! Gostava tanto de sentir o seu pulsar! Já fazia parte de mim... E agora sinto falta dela...

A enfermeira respirou fundo. Não estava preparada para aqueles dizeres. E Alberto prosseguiu, agora mais calmo:
- Sabe, eu e a minha mulher ainda não conseguimos ter filhos. Começo a pensar que nunca o conseguiremos...
- Mas que tem uma coisa a ver com a outra? - perguntou, incrédula, a enfermeira.
- Ter aquela hérnia foi o mais próximo que estive da sensação de paternidade... e agora ela foi-me arrancada! Já estava habituado a ela, foram tantos meses... Não estava preparado para isto que me aconteceu! Não sei que fazer... - e recomeçou a chorar convulsivamente.

A enfermeira chamou discretamente dois colegas.
- Levem este senhor daqui. - sussurrou. - Ele não está bem, conduzam-no ao gabinete do psicólogo de serviço. Dirigiu-se a Alberto e pôs-lhe a mão sobre o ombro.
- Olhe, diga-me só o seu nome, sim?
- Alberto - respondeu a fungar.
- Senhor Alberto, queira acompanhar estes senhores enfermeiros. Eles vão tentar resolver o seu problema, está bem?
- Obrigado, menina! Muito agradecido! - disse, limpando as lágrimas e o ranho ao toalhete que lhe tinham oferecido. Voltou-se depois para os enfermeiros:
- Os senhores vão implantar-me outra hérnia, não vão?
E, ajeitando o colarinho, esboçou um largo sorriso, tal era agora o seu contentamento.

27 de janeiro de 2006

No pasto


Depois da sesta que tão bem lhe sabia naqueles dias de forte canícula, João do Soito levou as mãos à cabeça.

“Raios! Ia-me esquecendo! Já deve ter começado!”

E o pastor abriu o alforge tirou de lá o rádio a pilhas que lhe fazia companhia e onde gostava de ouvir as notícias do meio-dia e meio e programa de “discos pedidos”. Rodou o botão do transístor e esperou até ouvir a voz familiar de Maria Helena, aquela voz que o sinal pouco forte tornava roufenha. Os cães Serra da Estrela que o acompanhavam na labuta diária aproximaram-se, latindo alegremente e abanando a cauda; pareciam partilhar do contentamento do pastor quando ligava a telefonia nos inícios de tarde. Já as ovelhas que estavam mais próximas de João limitaram-se a olhá-lo, com a indiferença que lhes caracteriza a expressão – apenas prestavam atenção ao barulho que o velhinho aparelho emitia.

Gostava daquela vida de pastorícia. Apenas lamentava não poder libertar-se daquela ocupação aos domingos e feriados. A vida de pastor não se compadece das intempéries ou do calendário. Sempre que tal é preciso, lá ia João apascentar o rebanho que tão bem conhecia já.

Sorrindo, pegou no telemóvel que o dono do rebanho lhe tinha dado e marcou o número que já conhecia de cor. Daí a momentos...

- Quando o telefone toca, boa tarde! Com quem tenho o prazer de falar?

- Está sim! É a menina Maria Helena? Como está a menina? Daqui fala o João do Soito. Queria ouvir uma música do Tony Carreira, uma qualquer! Gosto de todas, sabe...

- Senhor João, hoje já passámos um tema do Tony Carreira. Mas teremos todo o prazer de passar uma música de outro artista! Tenha a bondade de escolher.

- Hummm... – o pastor cofiou as longas suíças enquanto pensava, até que se decidiu. Olhe, pode ser então aquela música dos Humanos, a Maria-qualquer-coisa – nunca fui grande coisa com nomes, sabe, menina?

- Muito bem, senhor João. O seu pedido será atendido! E quer dedicar a música a alguém?

- Sim, queria dedicá-la a uma grande amiga minha, a Ana Joaquina! E até fiz um verso para ela, posso dizê-lo?

- Diga diga, senhor João – começava a denotar-se no tom de voz da locutora algum nervosismo; estava a ultrapassar o tempo estipulado para aquela conversa.

- Então cá vai! (João pigarreou antes de avançar):

“minha adorada Joaquina

fala o teu amigo Soito

és cachopa bem ladina

ai que saudades daquele coito!”

- Muito bem, senhor João! Obrigado pelo seu pedido, até uma próxima!

- Adeus, menina! Foi um prazer falar consigo! Bom trabalho!

Desligou o telefone celular e aumentou o volume do rádio a pilhas. E logo a música que tinha solicitado ecoou por todo o prado:

“Maria Pernilla, já te tenho dito! (Hummm...)

Maria Pernilla, já te tenho dito! (Hummm...)

esse teu nome, sei que não é um espanto

mas é cá da terra e tem um certo encanto!

Maria Pernilla, como foste nessa

De chamar Vanessa à tua menina?

Maria Pernilla, como foste nessa

De chamar Vanessa à tua menina?

Qu´é bem formosa e muito moreninha...

Maria Pernilla...”

João sorriu durante toda a canção; aliás, manteve esse sorriso nos lábios durante o resto da tarde.

Joana Amaral Dias

Maria Alberta Menéres - Dúvida

O carvão é preto.

Quando arde é vermelho.

Qual é afinal

A cor do carvão?

Minha mãe, de noite

Não entendo nada:

Será que as cores nascem

Só de madrugada?

Minha mãe, quem sabe

Se a voz do amarelo

Não é doce apenas

Na imaginação?

20 de janeiro de 2006

Indecisão (parte um)

A assembleia eleitoral lá do bairro funciona na escola primária. E nessa assembleia há duas cabinas onde os eleitores exercem o seu direito (de voto, claro).

É possível que as duas cabinas estejam desocupadas quando chegar a minha vez de "botar a cruz". Que farei então? Deverei dirigir-me à cabina da esquerda ou à da direita?

(Felizmente que terei um dia inteiro para reflectir - vou passá-lo em frente ao espelho...)

Post em branco

Um dia tinha de acontecer. A musa ausenta-se sem deixar rasto e fico de rastos. Passo os dedos gordurosos pelas rastas; cofio a barbicha (cof, cof, cof - ai esta tosse!). Este post escrito a branco é uma disparatada homenagem à escritora que me ocupa as meias-horas diárias antes de Morfeu me tomar nos seus braços (não é o que estão a pensar!) Estou a ler "A Obra ao Negro", de Marguerite Yourcenar - a Marga!, por isso posto, não a negro mas a branco. Já dizia o outro: "O off-shore lava mais branco!"

O mano (cortesia Mora)

"O mano"

Quando eu tiver um mano,

vai-se chamar Herrare porque Herrare é o mano.

Eu vou gostar muito do meu mano.

Fim.


(Recebi este texto por e-mail. Obrigado Mora, não és tão má como pensava!)

17 de janeiro de 2006

Linda Carlota

Linda saiu de casa nessa fragorosa manhã de Sábado sem se despedir da sua irmã; mas tal não era necessário, pois Carlota já sabia que Linda ia dar o seu passeio habitual de bicicleta pelas ruas do bairro.

Mas, quinze minutos após a saída de Linda, a leitura de Carlota foi interrompida pelo soar do telefone. Algo contrafeita, a jovem dirigiu-se ao hall de entrada; ia fazer meia-volta, revirando os olhos ao reparar que a mãe já estava a atender a chamada, mas interrompeu o movimento quando notou que a mãe acabava de deixar cair o bocal e abafava um grito com as duas mãos. Carlota apressou-se a amparar a mãe, perguntando-lhe o que se passava. Titubeante, esta disse-lhe, de forma entrecortada: “É da Polícia... a Lili foi... atropelada... no cruzamento... Filha, a Linda morreu!” Dirigiu a Carlota um olhar de súplica enquanto proferia estas últimas palavras. E ficaram abraçadas, a soluçar, durante muito tempo, como que assimilando lentamente a notícia que acabava de lhes ser transmitida.

No funeral de Linda (filha mais velha de um casal recentemente separado), Carlota parecia tomada por uma apatia perante o que estava a acontecer. Ainda não aceitara totalmente a perda da irmã. Mais, não conseguia conceber a ideia que Lili visse a sua existência ceifada aos dezassete anos. Entre vários tumultuosos pensamentos, sentiu-se momentaneamente satisfeita por voltar a ver os seus pais de novo juntos. Abraçada a Cláudia, a sua melhor amiga, sentiu um torpor nas pernas; sentou-se no pequeno degrau que limitava o corredor central do cemitério, do portão até à minúscula capela. Ignorando os olhares lançados pelas outras pessoas, Cláudia juntou-se a ela.

“Sabes?” pronunciou Carlota num tom distante, como se lhe custasse falar, “Começo a achar que os cemitérios deviam ter uma câmara junto à entrada, onde as pessoas falariam, apresentando-se e deixando a sua mensagem de sentidas condolências, que nós veríamos mais tarde. Assim não teriam de incomodar-nos com estas conversas tão deprimentes... que a morte faz parte da vida já sabia, que não somos nada... que tenho de ser forte... uma mulher que nunca vi até me perguntou idade! Que falta de originalidade, não achas? E aquelas expressões patéticas de pena...” Cláudia não lhe respondeu – nem sabia como o fazer. Olhou-a, tentando descodificar a expressão da amiga enlutada. Finalmente, abraçou-a e ouviu-a soluçar baixinho.

Os dias seguintes foram penosos em casa da família (uma vez mais) desfeita. O pai de Carlota visitava-as todos os dias, mas não se delongava muito por lá, e as conversas com a ex-mulher terminavam muitas vezes em discussões. Carlota sentia o ambiente pesado que parecia tomar conta até de todos os objectos na casa. Entristecia-a pensar que os pais, ao contrário do que intimamente desejava, não voltariam a viver juntos, e por isso tentava passar o menos tempo possível em casa. Duas semanas depois, enquanto enxaguava a loiça que a mãe lavara, Carlota deixou cair um prato e desatou a soluçar, olhando os cacos. “Sabes, mãe? Sinto tanto a falta da Lili...” A mãe acercou-se dela. “Eu também, filha. Eu também...” E, abraçando-a, chorou convulsivamente nos seus ombros. Mas daquela vez, Carlota não chorou; reparou antes na mancha que as lágrimas de sua mãe lhe deixavam na T-shirt. Apercebera-se que, por mais que tentasse, nunca conseguiria consolar a mãe pela perda de Linda. E uma ideia começou a tomar forma na sua cabeça.

No dia seguinte, levantou-se bem cedo como de costume, mas os seus passos não a conduziram à paragem do autocarro. Tinha decidido faltar à escola nesse dia. Foi até ao cruzamento onde Linda tinha perdido a vida. Era um lugar perigoso, onde muitos automobilistas aceleravam em demasia para evitar o sinal vermelho de controlo de velocidade. Inúmeros acidentes ali tinham ocorrido, especialmente depois das obras de repavimentação, que tornaram mais estreitas as faixas de rodagem. Carlota deteve-se ali por alguns minutos; depois seguiu o seu caminho. Foi ao salão de beleza mais próximo, onde mandou que lhe cortassem o cabelo bem curto e o pintassem dum tom castanho-claro, ou “cor de trigo”, como o pai costumava dizer.

Quando voltou a casa à hora de almoço, verificou satisfeita que a mãe não se tinha apercebido da sua entrada em casa. Foi à cómoda de mogno e tirou de lá as roupas que vestiu. De seguida mirou-se em frente ao espelho e pegou numa das fotografias que estava no quarto onde não entrava há vários dias. Sim, era Linda quem havia regressado a casa. “A mãe vai ficar tão contente com o meu regresso!”, pensou. Carlota tinha deixado de existir. Penteada, vestida e maquilhada como a sua irmã, tornara-se agora nela. Conseguia até fazer aquele trejeito facial de Linda que fazia o pai sorrir, em que a covinha do queixo parecia mexer-se sozinha. E, respirando fundo, Linda foi procurar a mãe.

Encontrou-a no jardim, junto ao estendal. “Mã-ãe, voltei!” Quando a sua mãe se voltou, ficou petrificada, sem conseguir pronunciar palavra. “Sou eu, a Lili! Voltei a casa, finalmente! Não estás contente pelo meu regresso? Oh mãe, abraça-me! Tive tantas saudades tuas! Custou-me tanto estar fora!” Correu para a mãe de braços abertos, mas esta repeliu-a com um soco e afastou-se rapidamente, sem uma palavra. “Que estranho! Que se terá passado na minha ausência?”, disse Linda entredentes, passando os dedos da mão pelo maxilar dorido.

Ainda confusa, Linda dirigiu-se à garagem, pegou na bicicleta azul e foi até à rua. Passou pelas vizinhas que a olhavam fixamente sem reparar nelas. Pedalou cada vez com mais força, até lhe doerem os músculos das pernas, a respiração ofegante, as faces rosadas apesar da maquilhagem. Chegada ao cruzamento, parou, respirou fundo, olhou o azul do céu, fechou os olhos para melhor sentir o ar fresco da Primavera, e sorriu. Reabriu os olhos, montou a bicicleta e atirou-se para debaixo do autocarro que passava naquele instante no cruzamento.

Mar de nós

Adoro o mar, adoro imenso o mar imenso. Adoro, adoro, adoro! Ui que bom!, como dizia o outro. O mar é indissociável daquilo que o nosso país é. O mar, a maresia, a por vezes aziaga gesta dos homens do mar e das mulheres que de negro os choram. E há três coisas que o mar me invoca:

o Coisa número um: o mar tem uma vantagem sobre todos nós, humanos. Podes dizer a quem quiseres, num assomo de intolerância: “Olha, atira-te ao mar!” Mas experimentem dizer isso ao próprio mar! Rirá ribombante de desdém na vossa cara! “Pois se sou o próprio mar!” – dirá. E a esse argumento nenhum de nós tem resposta!

o Coisa número dois: o mar tem uma carga erótica / sexual bastante intensa. De cada vez que vou para dentro dele, saio de lá molhado.

o Coisa número três: o mar português é dos mais asseados que se conhecem por esse mundo fora. Quem passeia pelas praias portuguesas pode facilmente constatá-lo pela quantidade de lixo que se encontra no areal, ou seja o mar está sempre a deitar o lixo fora. Por isso acho terrivelmente injusto que se diga que as praias portuguesas são poluídas, quando na verdade se deveria enfatizar que o nosso mar é que é limpinho e expulsa a sujidade para os areais. À atenção de quem de direito.

E agora, coisa rara e inusitada por estas bandas, um POEMA!



Georges! anda ver o meu país de marinheiros...


Georges! anda ver o meu país de marinheiros,
O meu país das naus, de esquadras e de frotas!

Oh as lanchas dos poveiros
A saírem a barra, entre ondas de gaivotas!
Que estranho é!
Fincam o remo na água, até que o remo torça,
À espera da maré,
Que não tarda aí, avista-se lá fora!
E quando a onda vem, fincando-o a toda a força
Clamam todos à uma: “Agôra! agôra! agôra!”
E, a pouco e pouco, as lanchas vão saindo
(Às vezes, sabe Deus, para não mais entrar...)
Que vista admirável! Que lindo! Que lindo!
Içam a vela, quando já não têm mar:
Dá-lhes o vento e todas, à porfia
Lá vão soberbas, sob um céu sem manchas,
Rosário de velas, que o vento desfia,
A rezar, a rezar a Ladaínha das Lanchas:

Senhora Nagonia!

Olha acolá!
Que linda vai com seu erro de ortografia...
Quem me dera ir lá!

Senhora Daguarda!

(Ao leme vai o mestre Zé da Leonor)
Parece uma gaivota: aponta-lhe uma espingarda
O caçador!

Senhora d`ajuda!
Ora pro nobis!
Caluda!
Semos pobres!

Senhor dos ramos
Istrela do mar!
Cá bamos!

Parecem Nossa Senhora, a andar.

Senhora da Luz!

Parece o farol...

Maim de Jesus!

É tal qual ela, se lhe dá o sol!

Senhor dos Passos!
Sinhora da Ora!

Águias da voar, pelo mar dentro dos espaços
Parecem ermidas caiadas por fora...

Senhor dos Navegantes!
Senhor de Matusinhos!

Os mestres ainda são os mesmos dantes:
Lá vai o Bernardo da Silva do Mar,
A mailos quatro filhinhos,
Vascos da Gama que andam a ensaiar...

Senhora dos Aflitos!
Martir São Sebastião!
Ouvi os nossos gritos!
Deus nos leve pela mão!
Bamos em paz!

Oh lanchas Deus vos leve pela mão!
Ide em paz!

Ainda lá vejo o Zé da Clara, os Remelgados,
O Jeques, o Pardal, na Nam Te Perdes,
E das vagas, aos ritmos cadenciados,
As lanchas vão traçando, à flor das águas verdes,
“As armas e os varões assinalados...”

Lá sai a derradeira!
Ainda agarra as que vão na dianteira...
Como ela corre!
Com que força o vento a impele:

Bamos com Deus!

Lanchas, ide com Deus! ide e voltai com Ele
Por esse mar de Cristo...

Adeus! adeus! adeus!


António Nobre, Só

14 de janeiro de 2006

Demonia Producta




O Henrique Amaro deu-lhe antena na 3 e ela tomou-a toda para si! Falo de Karine Alexandrino, a emergência do mundo artístico brasileiro que mais tarde ou nunca chegará aos nossos ouvidos, olhos e líbido. De "Balada de Perdicta" lembro-me dos seus gritos aflitivos "Papai! Papai!", entrecortados por ruidosos arfares e umas linhas de baixo e bateria "sixties desgrenhados". Tratar-se-ia de um ajuste de contas familiar?

Nada disso! É apenas a personagem que Alexandrino (cearense de Fortaleza, reside em São Paulo) concebeu, impregnada de mácula, para o seu primeiro trabalho, "Solteira Producta". Demonia Producta, aliás Karine reclama influências da pop art e dadaísmo, mas que nos interessa isso? Nós queremos é que ela nos impluda os sentidos com a sua "terna poesia de uma sucata sombria", como diria Adolfo, dos canibais o mais luxuriante.

Karine tem um blog (pois se até eu tenho um... mas eu não sou artiste!) Eis
aqui o blog da Senhora, faça-se em mim segundo a Vossa palavra!



De "Solteira Producta" destaco:

"Supermercado do Amor" - Demonia destrava-se (olá!) de toda a razão e expurga os seus demónios e amores passageiros (não serão os dois o mesmo?).

"Zelda" - como um código postal (CEP), a música remete-nos para aqueles dias em que a azia nos tolhe. Nos dois temas parecemos estar perante os Pop Dell`Arte (será Karine um João Peste de saia travada e maquilhagem esborratada? Ou uma revisitação de Brigitte Bardot entre barbitúricos e champanhe?)

Ouçam-na, sintam-na, deixem que ela tome conta de vós, qual Mary Poppins trangressora que arrasta os meninos para o Mal! Karine, já és um ícone trash, vou pôr um atalho para ti no meu desktop / ambiente de trabalho! Viva ela! Viva eu! Viva nós!

Agora (queiram parar com os bocejos!) a parte útil do post. Todos vós podeis aceder gratuitamente a sete temas de "Solteira Producta". (Mas desenganem-se: A música pode sê-lo, mas Karine não é gratuita!) Querem saber como? Sigam os seguintes passos perdidos:

  1. Descarreguem aqui uma remistura (sacala! sacala! diriam os espanhóis)
  2. Ponham o vosso dedo virtual neste link
  3. Registem-se (ou cadastrem-se!) na Trama
  4. Procedam à descarga dos se7e temas.
  5. Deleitem-se a ouvi-los.
  6. Ou não (somos seres dotados de livre arbítrio).

11 de janeiro de 2006

Maximilian Hecker


Foto Michael Tewes

Foi há 3 anos que comprei o CD de Maximilian Hecker – “Rose”, o seu álbum de estreia, após ouvir dois temas no “Indiegente” da Antena 3 (então aos domingos à noite). Tive de comprar o álbum! “Never Ending Days” não me saía da cabeça.

E acabei por comprar aquele que se tornou no meu álbum favorito, tendo sobrevivido a todas as bandas que a dada altura passaram a viver em simbiose com o meu leitor de CD.

Hecker vive em Berlim; na sua música predomina uma melancolia (exagerademente?) romântica algo out of time, mas que interpreta e orquestra (ele tocou todos os instrumentos na gravação de “Rose”) de maneira sublime. As suas músicas aproximam-se amiudadas vezes do mau-gosto, do exagero, da parolice. São de um romantismo exacerbado, impregnadas de um dramatismo extremo, género “Tu não me amas, minha querida, por isso hoje vou tirar-me a vida”, apoiado por frequentes falsetes. Mas a sobriedade e a magnificente elegância dos arranjos resgatam-nos da banalidade e tornam-nos belos.

De “Rose” destaco o soberbo “
Never Ending Days”, I Am Falling Now” , “Rose” e aquela que é a mais “carta-de-suicídio-adeus que-me-vou-deste-mundo” das suas canções, “My Friends” – quando ele canta “Leaving is my only choice, will you cry for me?”, logo o som do piano é abafado por um ruído catártico e opressivo, quase insuportável mesmo. Curiosamente, “Daylight”, que também passou no dito programa de rádio é o tema menos bom do álbum, uma deambulação não muito bem conseguida no campo da electrónica.

E só agora me “chegou às mãos” “Infinite Love Songs” e, claro está, ando a ouvi-lo compulsivamente, principalmente os dois primeiros temas, “
Polyester” - uma apetência para títulos incomuns? “Rose” abria com a bela (canção) “Kate Moss” - e “Sunburnt Days”, mais duas esplêndidas ba(da)ladas, que de tão bem compostas e arranjadas se tornam na quintessência da “simplicidade apurada” (ou aparada?).
Neste álbum Hecker não resiste a experimentar o formato de algumas composições: “Infine Love Song” torna-se um tema dançável (a ousadia!), e “Green Nights”, ultrapassada a resistência das primeiras audições, revela-se um tema menor do artista (o que não significa que seja mau, apenas demasiado poppy). E já anda por aí "Lady Sleep", o seu último trabalho...

Não sei se a minha opinião mudará quando conseguir o devido distanciamento (que não o brechtiano – não consegui resistir!) relativamente a este álbum. Torna-se ainda difícil compará-lo com “Rose”. Poderei dizer algo quando me desamarrar dele.

9 de janeiro de 2006

Arnaldo, o comando

Arnaldo nasceu pobre no seio de uma família também pobre no ido ano de 1946, na aldeia trasmontana de Vilar de Nantes. O pai trabalhava numa serração de madeiras lá na aldeia; já a mãe labutava de sol a sol na lavoura, esfalfando-se a cultivar poucos terrenos pertencentes à família. E de muitas vezes ia trabalhar à jorna, para arranjar o sustento que lhes permitisse fazer face às privações que se viviam naqueles tempos.

E nessas alturas o pequeno Arnaldo ficava aos cuidados da sua madrinha, uma solteirona de quem as comadres diziam ter uma ligação pouco discreta com o pároco da aldeia. (Arnaldo perguntou-lhe uma tarde: “Já viu o Senhor Prior hoje, madrinha?” A resposta foi um sonoro tabefe.) A Dona Joaquina passava as tardes a bordar e a costurar e, sendo Arnaldo franzino, servia de modelo aos vestidos que fazia, para as sobrinhas de Lisboa que a visitavam pelas festas maiores. Não raras vezes Arnaldo era gozado pelos outros miúdos da aldeia, quando estes passavam em casa da velhota e o viam naqueles trajes. Ficou célebre na aldeia o episódio em que Arnaldo não conseguiu conter as suas precisões intestinais, (tinha recebido ordens da madrinha para aguentar mais um pouco). Ao passar no largo da aldeia, Arnaldo passou a ouvir a frase “Ó madrinha, quero fazer cocó!” com que os vizinhos o mimoseavam. Mas a sua masculinidade foi resguardada perante o tribunal da aldeia anos mais tarde, quando desposou a disputada filha do magarefe, a qual rapidamente engravidou.

Anos mais tarde, Arnaldo foi cumprir o serviço militar, deixando a mulher com Alzira, a filha recém-nascida, a acenar. No quartel sofreu a sua primeira grande decepção. Pretendia ser admitido nos Comandos, mas devido à sua estatura teve de contentar-se com a Infantaria. Mas rapidamente se viu atirado Para a Guiné-Bissau, onde em 1964 foi incorporado na Guerra que viria a garantir a independência daquela que conhecia como uma das províncias distantes do glorioso Portugal, assim dizia Salazar. Mal teve tempo de se habituar ao clima sufocante e aos mosquitos que por aquelas paragens abundavam; cedo os horrores quotidianos do conflito se tornaram na sua maior preocupação.

Regressou à sua aldeia natal quase três anos mais tarde, aparentemente sem mazelas físicas e psicológicas. Mas emocionava-se quando contava aos aldeãos a história do massacre de Chiluame. A companhia de que Arnaldo era batedor tinha acampado por uma noite junto a essa aldeia. De manhã os anciãos indicaram-lhes um trilho supostamente seguro a nordeste da aldeia. Mas, menos de dez quilómetros volvidos, a Companhia foi alvo de uma emboscada, em que os rebeldes tiraram a vida a seis amigos de Arnaldo. Revoltados pelo que acabara de ocorrer, os soldados portugueses regressaram à aldeia e iniciaram, ensandecidos pela raiva, uma chacina em que ninguém foi poupado a uma morte que, para alguns, se revestiu de uma atrocidade inimaginável. (Os olhos de Arnaldo faiscavam sempre ao descrever tal cenário).

Anos se passaram, até que Arnaldo acordou a meio de uma entre tantas noites cheio de suores frios. E nessa noite decidiu-se a partir. Em silêncio vestiu-se, preparou uma mochila com algumas roupas e pôs-se à boleia. Sem saber ao certo para onde se dirigia, acabou por ir parar ao Porto, onde passou a dormir ao relento e a vaguear pela cidade durante o dia.

E começou então a perpetrar um estranho ritual. Arnaldo chegava a um café ou pastelaria e, depois de mendigar uma tigela de leite ou um cigarro, aproveitava quando o empregado virava costas para lhe surripiar o comando da televisão. (Outras vezes roubava-o de uma qualquer mesa). Arnaldo levava o comando consigo e introduzia-o no canal rectal, até se fartar da brincadeira e abandoná-lo num qualquer caixote de lixo. Repetiu este invulgar procedimento bastas vezes, e sempre sem perceber porque o fazia (a fome e o alcoolismo que entretanto se lhe tornaram companheiros de jornada toldavam-lhe quase por completo o discernimento).

Até que um dia, o dono da pastelaria “Flor de Massarelos” o surpreendeu a meter o comando no bolso do gasto sobretudo. E no meio da berraria que se seguiu, Arnaldo lá confessou que “só queria meter o comando no cú”. Entre risos de escárnio e abanares de cabeça de senhoras misericordiosas, Arnaldo foi minutos depois levado pela ambulância que o encontrou encharcado em sangue junto ao muro contíguo ao estabelecimento.

Presentemente, Arnaldo repousa no Lar da Misericórdia de Chaves. Renegado pela família, passa os dias a mirar embevecido as velhotas a costurar.