31 de dezembro de 2005

Aproxima-te...

O ano finda-se no barulho dos fogos de artifício (dos nossos artifícios). Muitas coisas voltam, muitas outras não. E o coração é um vasto centro comercial.

(Como poderia muito bem ter dito Heiner Müller...)

30 de dezembro de 2005

Falo

Tive de o fazer, não aguentava mais aquele tormento que, quando menos o esperava, voltava a aterrorizar-me, e de cada vez com maior intensidade. Era sinistro, arrepiante, tinha de pôr cobro a isso enquanto era ainda possível.

Foi a meio de uma noite mal dormida que o meu suplício começou, literalmente, a tomar forma. Senti algo a remexer-se por debaixo do pijama. Desnudei-me e, no lugar do falo, estava um cão a emitir pequenos gemidos. Se já viram um cão recém-nascido poderão visualizar a criatura em que se havia acabaado de transformar a minha genitália. De olhos ainda fechados, corpo lisinho e húmido, as orelhas ainda coladas ao dorso, as narinas a farejar pela primeira vez... Soltei um urro incontido de terror! "Estarei a sonhar?" - pensei. Mas não, aquilo estava ali! Subitamente, veio a acalmia: olhei de novo, ainda temeroso, e o cãozinho estava já candidamente adormecido.

Nesse dia não conseguia raciocinar, tal era a angústia que sentia. Fiz a minha rotina diária, de casa para o escritório, almoço na Baixa, encomendei o jantar, internet à noite. Procurei descobrir num motor de busca uma qualquer explicação para o sucedido, mas nada (o que só aumentou o meu temor).

E a meio da noite novamente o sobressalto, agora com mais vigor nos latidos que soltava, o pequenomonstro voltava a despertar e a arrancar-me gritos dementes! (Teria fome? Que podia fazer?). Mas poucos minutos durou o tumulto, pois o bicho logo voltou a aquietar-se. Só eu não voltei a adormecer nessa noite, pensando no que se poderia vir a tornar a minha vida a partir daí.

Na terceira noite não consegui aguentar. Eram 4:48 quando os seus gemidos agonizantes me arrancaram do sono obtido à custa de antidepressivos. Esperei em vão pelo seu cansaço, mas o diabo do cão parecia possuído (e não estaria antes eu dominado por uma qualquer entidade malévola?)
O chinfrim parecia interminável, até que não consegui aguentar mais. Fui à cozinha, escolhi a maior das facas que encontrei, fiz pontaria, cerrei os olhos, rangi os dentes... Antes de desmaiar pude ainda ver o canídeo inconsciente, tombado ao lado do meu corpo. Lembro-me de ter pensado: "Paz, finalmente!"

Recuperei os sentidos já no hospital. O enfermeiro contou-me que tinha sido uma vizinha a alertar a polícia. Disse-me também que os paramédicos tiveram de regressar ao apartamento com um saco de gelo para recolherem o meu pénis. "E não acharam nada de estranho nele?" - perguntei esperançado. "Hummm... não, ao que parece nada de anormal havia. Seria um pénis como tantos outros." - respondeu-me, cofiando o bigode e fazendo um trejeito esquisito nos lábios.

Nessa mesma tarde um psiquiatra veio ter comigo. Contei-lhe todos os pormenores da mutação que me atormentara e conduzira à mutilação do órgão genital. Ouviu-me atentamente e deu-me, segundo as suas palavras, "uma óptima notícia". Ainda estavam reunidas as condições para uma cirurgia de reimplantação do membro amputado.

A operação foi bem sucedida: três semanas depois voltei a casa, fortemente medicado para evitar complicações do foro anatómico (pelo menos foi o que me foi dito). Fui também mantido sob apertada vigilância médica, com uma sessão semanal com uma psiquiatra.

Tudo parecia ter regressado enfim à normalidade, quando uma noite voltei a ouvir aquele som que julgava para sempre varrido da minha mente. E fitei-o estarrecido: lá estava ele de novo, o cão recém-nascido a uivar, a ganir, a gemer, a contorcer-se! Foi demais para mim. Corri até à cozinha e voltei a separar aquele monstro horrível do meu corpo. Mas desta vez, num assomo de lucidez, chamei Adolf, o meu gato siamês. Dominando a repulsa (e as dores) que sentia, peguei no canídeo que jazia ensanguentado no chão da cozinha e dei-o ao gato, que o devorou com sofreguidão. E experimentei, antes de voltar a desfalecer, uma sensação de alívio: afinal acabara de me livrar daquela terrível aberração para sempre.

(Aviso prévio: este texto contém linguagem que poderá ser considerada ofensiva para quem nela detecte uma conotação sexual)

27 de dezembro de 2005

E agora para algo completamente igual...

Folheava eu as revistas "PREMIERE" que tenho numa prateleira cá dos meus aposentos, quando me deparei com um artigo que na altura me escapou. Falo da revista de Janeiro 2004 (nº 51). Na página 19, Criswell ironiza acerca de uma crítica de Rui de Azevedo Teixeira, publicada no Jornal de Letras, sobre "Os Imortais", filme de António-Pedro Vasconcelos (o Tó-Pê, para os mais familiarizados).

E sinto-me compelido a transcrever tão insignes excertos desse abrilhantado discurso. Pois não é que hoje ou ontem o mentor da Tasca da Cultura, o caro O Bom Selvagem galardoou tão pergaminhado (!!!) Jornal com o "prémio" de Pior da Imprensa 2005! Tenho de confessar-vos (serei lido por mais de uma pessoa?) : sou um adepto descarado do plágio premonitório!

Eis então o texto "excertado" de Rui de Azevedo Teixeira. Atenção que estão prestes a deparar-se com uma pérola de cultura (daquelas bem raras!)

"António-Pedro Vasconcelos, em Os Imortais, no seu trabalho de transcodificação intersemiótica do literário para o fílmico, torce o programa semântico da novela (...)"

"(...) faz, em última instância, um estudo da dor, essa categoria do silêncio tão menosprezada pelo ruído pós-moderno."

"(...) uma fotografia de grande imediacia, uma música diegética que, metaforicamente, cobre toda a história, uma linguagem sem ademanes de câmara (...)"

"(...) uma obra tecnicamente impoluta - consabida raridade no cinema português - e dramaticamente vibrátil."

"Com um "radical de representação" oculto - a demiúrgica mão de Vasconcelos é soberbamente invisível, o filme mescla quantidades equilibradas de humor, pausas dialogais reflexivas e acção bruta, sempre verosímil (...)"

"Maria Rueff, singularmente sinistra, e Alexandra Lencastre, sedutoramente dependente, levantam o problema, sopram, aqui e ali, doses de veneno táctico (...)"

"(...) numa cena de transcendência imensamente vazia (uma unidade narrativa que não deriva da diegese da novela de Ferraz (...)"

Ainda bem que não reparei neste texto na altura devida, senão teria escrito uma irada missiva à redacção da PREMIERE! Então acham justo que se desvende assim a história de um filme?

24 de dezembro de 2005

A Sociedade do Espectáculo

“O espectáculo é o mau sonho da sociedade moderna acorrentada, que finalmente não exprime senão o seu desejo de dormir. O espectáculo é o guardião desse sono.”

Na esfera da corrente que se designou de situacionismo, Guy Débord elaborou uma “teoria” da sociedade mundial, na década de 1960, que ainda hoje, apesar da convulsiva evolução dos modos de vida contemporâneos, impulsionada por um desenvolvimento acentuado a nível tecnológico, mantém uma pertinência e uma actualidade bem vincadas.

Em “La Societé du Spectacle” (1967), Dèbord anuncia o reinado da “sociedade do espectáculo”, resultante do triunfo do capitalismo; aliás estes dois aspectos encontram-se simbioticamente ligados, pois servem de suporte mútuo. O espectáculo invade, então, todas as esferas da economia e da sociedade, imiscuindo-se inclusivamente nas esferas do domínio privado, reorganizando-as e reinventando-as. “Ele é o sol que não tem poente, no império da passividade moderna. Recobre toda a superfície do mundo..." Ele impõe-se como "modo de vida dominante", numa evolução contínua que acompanha – e se confunde – com o desenvolvimento económico.

Para a edificação deste império concorreram diversos factores. Destes, o principal é o crescimento e desenvolvimento económico, que centrou em definitivo todo o processo de produção na “mercadoria”, no produto consumível. Em face disso, o trabalho humano torna-se definitivamente salariado, e o crescimento económico leva a que, uma vez assegurada a sobrevivência, se passe ao patamar superior das necessidades humanas. São as “sobrevivências aumentadas”.

Daqui resulta também uma evolução do operariado. Deixa de existir o trabalhador strictu sensu, passando a “coexistir” com o consumidor. Segundo Débord, a melhoria das condições laborais e salariais pretendem assegurar que o trabalhador disporá de mais tempo de ócio e de maiores capacidades financeiras, para que possa adquirir mais mercadoria, de modo a fomentar e a incrementar a produção desta. E o desenvolvimento do sector terciário não será senão o prolongamento da necessidade de aproximar a mercadoria do trabalhador / consumidor. O capital deixa de constituir apenas a força que estimula a produção; torna-se antes uma força de difusão “worldwide”, e “a vastidão da sociedade é o seu retrato”. Alguém falou em globalização?... A sociedade e a economia tornam-se indistintas, e uma depende da outra.

Num contexto da “unificação feliz da sociedade pelo consumo”, o que valoriza qualquer produto é o destaque que, num dado momento, lhe é conferido socialmente. Quando é divulgado, julgamos estar perante o “mistério revelado” daquilo que produzimos, logo daquilo que pensamos e somos. No entanto, logo que esse objecto é apropriado pelo consumidor, por milhares de consumidores, “desmistifica-se”, vulgariza-se, e logo se busca outro “ícone” que glorifique a nossa existência. Há uma procura incessante da “nova ilusão de verdade”, da “next big thing”, porque a sociedade do espectáculo não pára.

Há uma ascensão da burguesia, com a “liberdade do comércio generalizado”, de célere expansão, moldando o espaço à sua imagem. O espaço, na acepção tradicional da palavra, é reinventado, tornando-se um produto da sociedade do espectáculo. Há uma unificação do mundo pela mercadoria, e a própria sociedade universaliza-se, esbatendo de uma forma mais ou menos vincada as fronteiras tradicionais. Tal como o espaço, também o tempo se torna ele próprio uma mercadoria. “O tempo é tudo, o homem não é nada; é quando muito a carcaça do tempo”. É o tempo do não-desenvolvimento humano.

Voltando ao princípio, a sociedade do espectáculo apropriou-se dos trabalhadores para poder transformá-los em consumidores do dito “tempo-mercadoria”.

A esta alienação social vai corresponder a supressão da distância geográfica, decorrente do desenvolvimento tecnológico, bem como a tomada de posse do território habitado, através do urbanismo que, uma vez mais, vai espelhar e reiterar a realidade desta “nova ordem”.

“Com os meios de comunicação de massa a grande distância, o isolamento da população verificou-se ser um meio de controlo muito mais eficaz”. Este “devir consumista” origina o crescimento urbano “mushroom-like”, os santuários do consumo, a “ditadura do automóvel”, enfim, o grande supermercado mundial. Pode dizer-se mesmo que, no tempo presente, as cidades “estão a consumir-se a si próprias”.

É nos países mais desenvolvidos que surgem os primeiros sinais de contestação e de negação (real ou panfletária) da abundância capitalista. Quem tem tudo só fica com o tédio, apetece dizer. Recusando, ou pelo menos desconfiando, na essência, a sociedade do espectáculo e a “cavalgada desenfreada” do capitalismo, esta franja contestatária é desdenhada e reprimida pelo “establishment”. Contudo, ao pretender assumir uma postura iconoclasta face à sociedade do espectáculo, estes “anjos caídos” do capitalismo liberal inscrevem-se na cultura que rejeitam. É que, na sociedade do espectáculo, a negação real da cultura é a única a conservar-lhe o sentido. Ela já não pode ser cultural. Torna-se “algo que permanece ao nível da cultura, ainda que numa acepção totalmente distinta”.

20 de dezembro de 2005

A Quinta

Faltava um mês para completar dezassete anos quando o meu pai achou que estava na altura de me ensinar certas coisas da vida. A inspecção militar ainda tardaria um ano, o tempo que demoraria a tornar-me um homem aos olhos da sociedade. Certamente informado das revistas que a minha mãe havia encontrado debaixo do meu colchão, o meu pai levou-me a dar um passeio de carro. Chegados a uma quinta nos arrabaldes da cidade onde vivia, deixou-me no carro, falou rapidamente com o dono e mandou-me entrar e escolher a árvore que mais me atraísse. Como não pretendia atrapalhar-me com a sua presença ficou a observar-me, embevecido, a uma certa distância.

Como seria de esperar, estava nervosíssimo. Nunca tinha estado em cima de uma árvore, apesar de ter umas noções vagas sobre o assunto. Deambulei pelo pomar da quinta, até que me decidi por uma frondosa nespereira. Respirei fundo e comecei a subir a escada de madeira (lembro-me de como me tremiam as pernas), até ficar completamente em cima dela.

Sorri nervosamente para ela e apresentei-me, tentando meter conversa. Como suspeitara, a nespereira não estava autorizada a falar comigo, donde logo me arrependi da figura de parvo que estaria a fazer. Até que me enchi de brio e decidi-me a colher o primeiro fruto (afinal era para isso que ali estava!). Apanhei duas nêsperas bem grandes e amarelas de maduras que estavam e aproximei-as da boca. Nisto, ouvi alguém lá em baixo: “Cuidado!” Olhei e vi o dono da quinta, que se aproximara sorrateiramente. “Ó amigo, era só para avisar que não deve comer os caroços dessa fruta! Olhe que pode apanhar alguma doença séria!” Agradeci, envergonhado pela posição em que tinha sido apanhado, já quase com a nêspera na boca.

Continuei a deliciar-me naquela nespereira, a tal ponto que a certa altura ouvi o meu pai pigarrear lá em baixo. Voltei-me, ainda com duas nêsperas na mão. “Vamos ter de ir embora rapaz, a tua mãe já deve estar em cuidados connosco.” “Já? Mas se ainda agora chegámos!” “Estás há quase duas horas em cima da nespereira! Vá lá, desce que temos de ir. Prometo-te que hás-de cá voltar, assim lhe tomes o gosto!” – disse ele com um sorriso ligeiramente imbecil.

E se lhe tomei o gosto! Antes dos dezoito anos feitos ainda lá voltei uma meia dúzia de vezes, sem me fartar daquelas nêsperas tão suculentas que tanto me deleitavam! Apenas lamento que a nespereira nunca me tenha dirigido uma palavra sequer, mas como referi assim tinha de ser.

Esta minha primeira subida a uma árvore marcou-me para o resto da vida.
A tal ponto que nos anos seguintes, numa conversa com um grupo de amigos, confidenciei que a minha fruta preferida é a nêspera e o quanto gostava de estar em cima de uma nespereira a comê-las horas a fio. Logo me apercebi, entre sorrisos e piscadelas de olho culturalmente produtivas, que me olhavam de soslaio, e as raparigas do grupo logo me puseram a “carinhosamente” a alcunha “Nêsperas”. Pressentindo a troça impressa nessa atitude, decidi não contar-lhes a história que agora vos narro; preferi antes contar-lhes a história do Ti Acácio.

O Ti Acácio era um homem já numa “meia-idade avançada” que morava mesmo ao lado da quinta das nespereiras (aliás, foi o dono da quinta quem me contou este curioso episódio que passo a narrar). Apesar de o pecado lhe morar ao lado, nunca cedeu à tentação de ir à quinta. Tinha um casamento feliz de mais de 30 anos, que terminou inesperadamente a 13 de Maio de há oito anos atrás, por falecimento da sua queridíssima esposa. Pode dizer que tal falecimento se tornou no primeiro contra-milagre de Fátima de que há memória, uma vez que a infeliz faleceu precisamente quando pedia à Virgem, via televisão, a cura para a diabetes que cada vez mais a apoquentava.

A súbita viuvez pareceu transtornar o homem; durante semanas, meses, os vizinhos viam-no cabisbaixo, melancólico, e as suas cordas vocais emitiam apenas sons rarefeitos.

Mas eis que o viúvo lá se decidiu por arranjar uma nova companhia, o que logo indignou a vizinhança. Tratava-se de uma boneca insuflável, que ele exibia descaradamente em público. Levava-a na motorizada para onde quer que fosse, punha-a na varanda junto a si enquanto apanhava sol, sempre com a expressão de boquiaberto espanto característica de tais apetrechos. Mas uma coisa era certa, a felicidade voltara a estampar-se-lhe no rosto rejuvenescido.

Só que a inclemente tragédia voltou a bater-lhe à porta. Um dia em que estava no seu pequeno quintal das traseiras com a Lola (pois assim a chamava), Adolf, o gato siamês do vizinho, decidiu afiar as garras nela. Logo o felino fugiu esbaforido com o barulho que a boneca fez ao rasgar-se, enquanto o Ti Acácio já só pôde ver a sua companhia a esvaziar-se perante os seus aterrados olhos. Pegou nela (melhor dizendo, no que restava dela) e foi num dilacerado pranto até à mercearia da esquina. Era ver as senhoras a benzerem-se e os homens sem saber o que fazer perante tão grotesco espectáculo. O Ti Acácio acabou por ser transferido para o lar da terceira idade mais próximo, e nunca mais soube dele.

O que mais me dói na sua história é pensar que tudo poderia ter sido diferente se ele se tem dirigido à quinta das nespereiras...

16 de dezembro de 2005

Dia de decisões


Às 9h30 da manhã, tem início uma das reuniões mais importantes dos últimos meses para a multinacional seguradora ALFAMA Seguros. São dadas ordens às secretárias para não interromperem a reunião, qualquer que seja o motivo. A ALFAMA resultou da fusão de várias empresas do ramo: das iniciais das empresas Allianz, Life Insurance, Fidelidade Mundial, Aliança UAP, Mapfre e Açoreana nasceu uma super-empresa transnacional. O nome ALFAMA surgiu da sugestão do Departamento de Marketing e Comunicação, com o fito de criar um nome que apelasse à portugalidade do mercado. Na reunião desse dia debatem-se as estratégias com vista ao downsizing dos efectivos da empresa no dealbar de uma nova fusão com um gigante norte-americano do ramo. São 9h32 e os membros do Conselho de Administração colocam os respectivos narizes de palhaço e dão início à dita reunião.

Entretanto, em todas as escolas do país, os professores cumprem a sua rotina diária e abandonam, a toque de campainha, as salas de docentes. Colocam os seus narizes de palhaço e encaminham-se para as respectivas salas de aula. Todos estão a par da decisiva reunião que terá lugar nesse mesmo dia no Ministério da Educação, em que os mais altos funcionários, bem como um colégio de pedagogos debate com urgência as estratégias a adoptar para fazer face a mais um estudo recém-publicado, onde se prevê que o português de Portugal se venha a tornar numa língua morta no espaço de oito a doze anos. Os funcionários cumprimentam-se, marcam as faltas no livro de ponto do Ministério da Educação e colocam os narizes de palhaço. Dá-se por iniciada a reunião.

No estádio do Dragão, inicia-se mais um Porto-Benfica. Apesar de não ter o peso de outras épocas (as duas equipas encontram-se a lutar pela permanência na Liga Touch&Go, enquanto o União de Coimbra celebra antecipadamente a conquista do terceiro campeonato consecutivo), a rivalidade entre os dois clubes é demasiada para que algum deles conceba sequer a ideia de não vencer claramente o adversário. Com a solenidade habitual, as duas equipas e o sexteto de arbitragem entram em campo ostentando tarjas contra a entrada de imigrantes no país. Antes de se perfilarem e cumprimentarem no relvado, jogadores e árbitros colocam os narizes de palhaço. O jogo pode enfim começar.

No edifício do Comando Metropolitano de Lisboa da Agência para a Segurança e Bem-Estar, - corporação fundada após a extinção da PSP e GNR por queixas de falta de recurso à violência por parte dos agentes -, prepara-se atarefadamente o briefing diário onde se reportam os casos cada vez mais frequentes de roubo de narizes de palhaço no nosso país e o alastramento do tráfico destes produtos, cujos lucros superam já o do narcotráfico em território nacional.
Estes crimes grassam de tal modo pelo país, (apesar da maior incidência nas Regiões Metropolitanas de Lisboa, Porto e Figueira de Castelo Rodrigo), que foram objecto de discussão de um Conselho de Ministros Extraordinário, realizado uma semana antes, onde se decidiu adequar a moldura penal à gravidade de tais cometimentos. Assim, quem for detido na posse de mais de cinco narizes de palhaço arrisca uma pena de 20 anos de prisão, agravada pela obrigatoriedade de assistir uma vez por semana ao programa da Fátima Lopes.
O porta-voz do Comando Metropolitano de Lisboa pigarreia, ajeita a elegante gravata das fardas que Maria Gambina desenhou para os agentes da corporação, testa os microfones e prepara-se para falar, quando o assessor de imagem lhe toca suavemente no ombro e passa discretamente a mão pelo nariz. O porta-voz sorri nervosamente, coloca o seu nariz de palhaço e inicia a declaração diária à imprensa.

Ao fim da tarde, em Viatodos, concelho de Barcelos, Maria Pernilla regressa a casa vinda de mais um dia de escola, acompanhada pela mãe. A petiza, de nove anos de idade, decide finalmente interpelar a mãe acerca de algo que há muito a inquieta. Pergunta-lhe a razão de tantas pessoas usarem actualmente narizes vermelhos de palhaço. Algo surpreendida pela pergunta, a mãe explica-lhe que, desde que os telemóveis passaram de moda, todas as pessoas passaram a ambicionar usar um nariz de palhaço, que é o novo símbolo da sua condição social. Maria Pernilla diz à mãe que gostava de ter um nariz de palhaço, pois alguns dos seus colegas mais velhos da escola já se passeiam com eles postos. Mas a mãe da pequena Maria diz-lhe, indisfarçavelmente pesarosa, que o orçamento familiar não lhes permite ainda extravagâncias desse tipo e promete, à guisa de consolação, que a sua menina poderá vir a ter uma surpresa num dos próximos aniversários. Cabisbaixa, Maria Pernilla recolhe aos seus aposentos e escreve no seu diário: “Os meus pais não querem comprar-me um nariz de palhaço. Quando envelhecerem, não tomarei conta deles.”

O engodo finalmente desmascarado


A alegoria da caverna é uma fraude! A teoria de Platão, publicada em "República", segundo a qual os homens presos numa caverna percepcionam as sombras projectadas e as vozes vindas do exterior como a "realidade" e a "verdade" quando tal não passa de mera sensação, não passa de uma das maiores fraudes da civilização ocidental.

Em verdade, em verdade vos digo: Platão apenas narrou uma singela história do quotidiano de um casal heterossexual, em que o homem da caverna regressava a casa depois de mais um derby entre o AEK Atenas e o Panathinaikos (vitória dos primeiros por 1-0, golo de Lyberopoulos). Claro que essas partidas valiam sobretudo pelo que ocorria depois dos jogos, com as batalhas campais entre as claques dos dois clubes, com bastonada à descrição. Bom, como dizia, o marido regressava à caverna de bastão na mão, e quando a mulher viu a sombra na parede da caverna, iluminada pela luz exterior, tomou a sombra do bastão por... enfim, vocês são crescidos, percebem destas coisas. E logo a mulher rejubilou pela chegada do seu companheiro. Estava contado o mito d`A ALEGRIA DA CAVERNA. Assevero-vos que foi nestes termos que Platão criou esta sua imortalizada narrativa.


Só que um copista que no início da Idade Média foi encarregado de traduzir esta obra equivocou-se, trocando “alegria” por “alegoria”. Sob tal pretexto logo tratou de desvirtuar todo o sentido de tão platónicos escritos, dando origem a um dos mais importantes “mitos” (realce-se a presença das aspas) da civilização da Antiga Grécia.

Posto isto, vejo-me compelido a desmascarar esta falácia! E venho solicitar a vossa contribuição Para o fazer. Para tal, queiram clicar no link abaixo (trata-se de um site que vos é certamente familiar), leiam o texto explicativo a apresentem a vossa assinatura.


www.petitiononline.com/fake_alegory

Grato desde já pela vossa contribuição. E, se não for abuso da minha parte, agradecia que falem deste assunto aos vossos conhecidos, Para que cada vez mais cidadãos se consciencializem desta temática tão pertinente.
Obrigado!

Ele é o Rei, ele é que é o Rei!



Por mais voltas que se dêem, uma coisa é certa: não há alimento mais português que o bacalhau. E quem não pensar assim que atire a primeira posta...

O português adora o bacalhau porque ele simboliza todas as nossas conquistas passadas, presentes e futuras. Atentem na posta da figura acima. Apresenta a forma de um “V”, que o português logo associa a um sentimento de triunfo sobre a adversidade, seja esta a falta de dinheiro a meio do mês ou ficar sem bateria no telemóvel durante uma conversa importantíssima com a amante. Portanto, o bacalhau é um símbolo do triunfo da inigualável gesta lusa.

O bacalhau também revela o espírito contraditório dos portugueses, diria mesmo a sua rebeldia face ao poder instituído (vulgo establishment). Senão vejamos: não se devem congelar alimentos depois de descongelados. É uma regra que temos de acatar, mas com o bacalhau estas imposições na nutrição são subvertidas. Então não é que o bacalhau, depois de um intensivo processo de seca, é posto de molho antes de ser cozinhado?
Não será isto o direito ao contraditório?

Quando tinha oito anos, a minha mãe mandou-me ir à despensa buscar uma posta de bacalhau. Uma ideia logo me perpassou a mente: a posta parecia um papagaio de papel! Fui em direcção à rua e logo arranjei um comprido cordel e duas canas com que fiz uma cruz para segurar o bacalhau.

Lancei-o ao ar mas ele não voou como os outros papagaios de papel. Voltei a tentar, lancei-o vezes sem conta até que, num acesso de raiva, atirei a posta ao chão e pisei-a furiosa e repetidamente, vociferando: “Não prestas, não voas, és inútil!” – tal era a minha raiva. Raiva essa que dez minutos depois tinha sido transferida para a minha mãe, que ao dar comigo me deixou o rabo a arder.

Curioso, agora que o menciono, a senhora que me traz os comprimidos a meio da tarde tem uns cabelos parecidos com os da minha mãe...

8 de dezembro de 2005

A minha arte é lixar-te

Foto Nan Goldin

A propósito do Anteciparte, um concurso destinado a artistas ainda fora do circuito comercial, recordei-me da galeria Artes em Partes, uma das muitas galerias de arte na Rua Miguel Bombarda, Porto. É relativamente fácil conceber um nome para um qualquer evento artístico, basta para isso arranjar um trocadilho catchy que inclua a terminologia "arte".
And the next thing you know, no que resta do meu cérebro logo começaram a fervilhar ideias (chamemos-lhe isso por simpatia).

lancinARTE
Algumas criações artísticas causam-nos um impacto tal que parecem lancinar-nos. O problema está em tentar deslindar a intenção do artista: muitas vezes a violência latente nas criações artísticas, seja nas artes performativas ou nas artes plásticas, reveste-se de um carácter gratuito. A violência e a guerra são das temáticas mais frequentes na arte, mas tudo depende do modo como nos são apresentadas. As fotos de Nan Goldin, os quadros de Dalí ou Picasso sobre a Guerra Civil espanhola, as peças de Heiner Müller ou Sarah Kane, entre tantos outros exemplos... Onde termina a exposição gratuita que pretende chocar o espectador no imediato e começa a subtileza da amargura do artista perante o que testemunhou? E por vezes a "violência" também se manifesta de forma subterrânea (vejam os quadros de Edward Hopper).

espantARTE
A manifestação artística pretende causar impacto em quem a apreende, mas até que ponto estará a arte actual a apostar no imediatismo? Falo sobretudo nas artes plásticas, em que as criações parecem cada vez mais "espartilhadas", amarradas pelo contextos, espacial, temporal e social. Parece-me que poucas são as obras de arte que realmente perdurarão e se tornarão verdadeiramente intemporais.

assimilARTE
Esta terminologia pode revestir-se de dois significados distintos: em primeiro lugar, trata-se da percepção da obra de arte e do conceito ou do seu leitmotiv por parte do espectador (e será mesmo necessário explicar a arte? Não se pode apenas deixar que os nossos sentidos a "degustem", como nos filmes de David Lynch? Para quê teorizar desnecessariamente?)
O segundo sentido do termo é bem mais orgânico. Não se sentem tão bem numa vernissage ou num Porto d`Honra que habitualmente ocorre na inauguração de uma exposição, ou na estreia de uma criação nas artes performativas? (quando há possibilidade de o fazer, claro.) Aquele ambiente de foyer, em que nos sentimos parte de um grupo com estatuto bem vincado, logo nos aumenta a auto-estima, do género "Eu estive lá com os meus pares." E se bebermos uns cálices a mais, surge um novo termo: inebriARTE.

alucinARTE
Lewis Carroll escreveu "Alice no País das Maravilhas" e "Alice do Outro Lado do Espelho" sob o efeito de enxaquecas fortíssimas que lhe provocavam alucinações. Ao espectro da arte o nosso cérebro associa quase instantaneamente a utilização de drogas. Apesar de se tratar de um preconceito, a verdade é que são inúmeros os artistas que as utilizam. Mas poderemos dizer que a criatividade é estimulada?

traumatizARTE Por vezes pode ser uma experiência aterradora ir pela primeira vez assistir a um qualquer espectáculo. Há uma fortíssima barreira psicológica e social que impede muitas pessoas de assistir a espectáculos. E essa é uma das grandes questões com que os agentes e programadores artísticos se deparam. No nosso país não está enraízado o costume de ir ao teatro, ou a exposições de artes plásticas, e muito menos à dança, ópera ou a performances mais ou menos nebulosas. E quem trabalha no sector da cultura sabe bem como é difícil gerir as bilheteiras e conseguir encontrar um equilíbrio em que se consiga atrair público sem banalizar / depreciar a qualidade da programação. Mas também é certo que muitos programadores pretendem atingir um estado de elevação tal que compram espectáculos tão bons, tão bons que... ninguém vai ver.

ostracizARTE ou estigmatizARTE
Nunca vos aconteceu estarem num grupo de amigos (pretensamente) cultos e dizerem algo do género: "Toda a obra do Jeff Koons é uma fraude!" Ou: "O João César Monteiro era um freak e os filmes dele são uma tremenda seca!" E quem diz João César Monteiro poderá dizer Godard, Kubrick, Kiarostami ou tantos outros.
E há sempre alguém nesse grupo de amigos que faz um trejeito esquisito e te olha horrorizado: "Mas o Kiarostami é um génio!" E ponto final! Nós é que somos uns ignorantes porque nos recusamos a idolatrá-los. Quando há uma ideia instituída sobre um artista, os que se atrevem a proferir uma opinião inversa arriscam-se a ser marginalizados do grupo de iluminados.

pavoneARTE ou emproARTE
poderia ter sido (mas não foi!) o nome dado à exposição retrospectiva da carreira de Mario Pavone durante o JazzIn`Tondela 2004. Mas pavoneARTE reflecte simplesmente o acto de cirandar pelo foyer ou pela galeria, mostrar-se, ser visto ali a celebrar o ritual do reencontro assinalado por discreto aceno e de um sorriso cúmplice. E é esse ambiente de foyer que constitui um dos maiores obstáculos que impedem algumas pessoas de assistir a espectáculos (pode parecer ridículo mas é verdade!).

torturARTE
As criações da maior parte dos coreógrafos nacionais torturam-nos em pleno auditório. A "Dança Contemporânea Portuguesa" ensimesmou-se e repete até à exaustão os mesmos movimentos, as mesmas neuroses. Um homem do futebol falou há anos em "tentativa de assassinato por audiovisual". Pois eu cá não lhe fico atrás e falo em "tortura por arte performativa".

instrumentalizARTE
Leni Riefenstahl foi a cineasta do regime nazi. Realizou provavelmente os filmes mais amaldiçoados da história do cinema. Teve de carregar até ao fim dos dias o estigma de ter realizado obras belíssimas como "O Triunfo da Vontade" ou "Olympia".
Fale-se também de Eisenstein, em que "O Couraçado Potemkine" ou "Outubro" não se conseguem (injustamente) dissociar da acção de propaganda. A criação artística, pela sua grandeza e mediatização, atrai todo o género de interesses, que não resistem a tentar utilizá-la em proveito próprio. Mas a criação artística deverá distanciar-se de todos os maniqueísmos externos, para que possa conservar a sua "pureza".

atropelARTE
Em Portugal temos também uma outra cultura: a "cultura das rotundas". E muitas destas são verdadeiros atropelos, senão atentados, à arte. As autarquias "decoram" as rotundas com obras de arte que, para além do gosto duvidoso (e por ser duvidoso não é passível de uma apreciação unânime), por vezes apresentam deficiências práticas (impedir a visibilidade, etc).

plagiARTE
Costuma dizer-se que "a arte imita a vida que imita a arte que imita e vida..." Mas é certo que quando a arte imita a arte, passamos falar de plágio. Aliás, o próprio título deste post não é original (shocking!) É uma transcrição de uns dizeres que há anos vi numa qualquer parede deste país. A arte é como a moda, renova-se constantemente e reutiliza / reformula conceitos já existentes. Torna-se portanto difícil aquilatar do "grau de originalidade" de uma criação. Um dos géneros artísticos em maior "expansão" - e queiram desculpar a utilização de expressões mais associadas à economia ou à astronomia - é o das criações "transdisciplinares", que combinam elementos de várias artes. Destaco o Novo Circo, que combina a arte circense com artes emergentes, como o vídeo, a dança, o próprio teatro, a música, donde resultam criações de grande beleza plástica.

E é tudo, sinto que começo a entediARTE...

7 de dezembro de 2005

Como me tornei amigo dos animais

Foi por pouco que consegui desviar o meu pé. Já anoitecia quando, distraído como ia no meu jogging, quase pisei o ouriço-cacheiro que se me atravessou no caminho. Parei, e ao recuperar do susto, apanhei outro ainda maior:
"Mais um pouco e espezinhavas-me, atenção à estrada!"

Não podia crer no que ouvia! Um ouriço-cacheiro a falar com voz de duende (sim, desde esse dia acredito em duendes!), e a fitar-me com a expressão zangada de alguém que acabou de sentir a morte a cair-lhe literalmente em cima. Mas depressa me refiz da surpresa:

"Estava tão absorto nos meus pensamentos que nem te vi, desculpa. Estás bem?"
"Sim." - respondeu, com um ar falsamente ofendido. "Mas tenho de confessar-te que não é por acaso que me encontro no teu caminho. Na verdade, já te tenho visto a correr por aqui."

"Então andas a seguir-me, é isso? Por isso arriscaste os teus espinhos?"

"Calma!" - o seu tom de voz era agora mais tranquilo. "Já vais perceber tudo..."

O que aconteceu então deixou-me perfeitamente atónito. Da floresta que bordejava o caminho surgiram num ápice dezenas de bichos, num burburinho acalorado. Coelhos, cobras, esquilos, texugos, salamandras, ratos do campo, várias espécies de pássaros, algumas que desconhecia. Todos eles se aproximaram de nós voando, rastejando, caminhando... Continuei boquiaberto, mas a minha estupefacção transformou-se num largo sorriso.

"Que fazem todos aqui? Uma assembleia dos animais da floresta?"
Gerou-se uma algazarra em que todos pareciam querer falar ao mesmo tempo. Outros limitaram-se a sorrir. A dada altura, uma voz emergiu daquela turba ululante e aos poucos todos se calaram. Era a coruja, a quem os outros animais nitidamente consideravam o porta-voz do grupo.
"Nós estamos aqui por causa de um assunto muito sério, que nos aflige a todos." E prosseguiu: "Desde que construíram aqui ao lado a via rápida, a nossa vida tornou-se bastante mais perigosa. Posso mesmo dizer que a nossa qualidade de vida se reduziu de modo exponencial! Muitos animais tiveram de fugir daqui, o que alterou a qualidade deste habitat! E o pior de tudo é que já todos nós perdemos familiares atropelados por esses monstros assassinos! "

Os outros animais anuíam em silêncio, e ficaram visivelmente emocionados, lacrimejantes mesmo, ao recordar os seus queridos que haviam partido... Eu ainda continuava aturdido, agora não tanto por estar a ouvir animais a falar mas pelo escorreito e eloquente discurso da coruja. Mas ouvi-a atentamente; no final, não pude deixar de reconhecer:
"Em verdade vos digo..." (era assim que Jesus começava muitas das suas alocuções às multidões) "de facto, a espécie humana é de longe o maior factor de perturbação dos ecossistemas, é o Homem que mais destrói o planeta, mas é igualmente certo..."

"Vá lá, diz-nos algo que ainda não saibamos!", interrompeu um esquilo de voz aguçada pela ira. " Estamos cansados de ser desprezados, maltratados pelos humanos! Temos de pôr cobro a isso! Queremos fazer ouvir a nossa voz!"

"O que o esquilo quis dizer", rematou a coruja num tom moderado "é que decidimos abordar-te para que faças chegar os nossos anseios a quem de direito, para que todos os homens saibam quem somos, e talvez aí parem este morticínio."

"E como poderei fazer isso? Não estão certamente à espera que vá contar a alguém que estive a falar com os animais da floresta! Vão pensar que enlouqueci!"


"E não te esqueças da minha situação particularmente melindrosa!" Era a cobra a tomar a palavra. "Por causa dessa história bíblica dos primórdios do Homem, nós, as cobras, somos visceralmente" - disse esta palavra de forma sibilina como só uma cobra - "odiadas por todos, que nos tentam matar gratuitamente. Ainda na semana passada duas crias minhas foram mortas por agricultores enquanto apanhavam sol junto ao charco..."

Neste momento a voz da cobra esganiçou-se até se sumir, enquanto baixava a cabeça. Quase juraria, não fosse o caso de tratar-se de um réptil, que as lágrimas lhe assomariam rapidamente aos olhos viperinos. Os coelhos aproximaram-se condoídos, a tentar consolá-la, mas mantiveram uma certa distância. Afinal, uma cobra sempre é um predador...

"Mas como posso eu ajudar-vos?" - repeti, ainda com a voz embargada pelos últimos momentos. "A não ser... a não ser que vos leve ao programa do Goucha! Aposto que ele poderá resolver a vossa situação!"
Logo se levantou um coro de protestos:
"Ao programa do Goucha, na 4? Mas que terrível falta de gosto!!!" Desta vez fiquei estarrecido, quase caí para o lado. Então até os animais da floresta sabiam da existência do Manuel Luís Goucha?
Apercebendo-se da minha indisfarçável surpresa, a coruja explicou: "Na semana passada os ratos do campo ouviram uma conversa entre agricultores enquanto estes vindimavam, e eles falaram desse tal Goucha, e que ele tinha um programa onde iam convidados de toda a espécie."
"Conheço alguém que trabalha na produção do programa do Goucha. Vou entrar em contacto com essa pessoa e logo se arranjará. Verão que em três tempos lá estarão em estúdio. E olhem que o Goucha tem uma vasta audiência!"

Os animais pareciam algo desapontados com a solução encontrada, mas para não parecerem malcriados (os animais também têm as suas regras de etiqueta, como sabem) lá se ouviram uns tímidos e pouco entusiasmados "Obrigado!" e "Que bom..."
"Para além disso, também conheço um jornalista freelancer que trabalha amiúde para o "24 Horas" e "O Crime". Decerto ele fará uma reportagem onde dissecará - não literalmente, claro - o vosso quotidiano. E olhem que são jornais de grande tiragem!!!"
"O que é um jornalista fri.. fri... o que é isso?" - indagou o texugo. Mas a coruja tomou a palavra e todos os olhares se voltaram para si:

"Agradecemos-te toda a colaboração e quero deixar-te, em nome de todos nós, o nosso mais profundo obrigado. Estou certo que te devemos o retorno a uma vida tão normal quanto possível na nossa floresta. E a partir de hoje saudar-te-emos sempre que passares por aqui... Ganhaste vários amigos leais hoje, podes estar certo disso! O nosso muito obrigado mais uma vez!"

Apesar de o aplauso que irrompeu não ter primado pela efusividade, não pude deixar de me comover perante estas palavras... Os animais voltaram para a floresta, conversando entre si. E eu continuei o meu percurso habitual.

O certo é que os animais nunca mais voltaram a falar comigo. Quando corria no caminho onde tudo aconteceu, parava no sítio onde estivemos, mas nada. E quando me cruzava com outros animais falava-lhes, mas eles não me retorquiam... Os mails que enviei aos meus contactos do "Você na TV" e dos jornais não obtiveram resposta. E agora ouço dizer por aí que estou a perder o tino... Mas a esses humanos não volto a dirigir palavra!

2 de dezembro de 2005

O Fim começa agora!!!

E eis que finalmente o mais ambicioso projecto da blogosfera dos últimos tempos vê a luz do dia...
Maria Pernilla, criação última de génios enlouquecidos pela vivência quotidiana num ambiente pouco menos que tresloucado...